Fortaleza tem 130 mil famílias sem moradia adequada

Mais de 1,4 mil pessoas buscaram assistência jurídica em 2019 na Defensoria Pública; falta de lugar salubre para residir e pedidos de Aluguel social lideram atendimentos de fortalezenses

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br
Legenda: Assim que ouviu a primeira pergunta, Maria ngela, 48, desatou a falar. Desabafava como quem clama por socorro, entre os últimos suspiros antes de ser sufocada pela situação totalmente insalubre. Também ajudou a erguer a Santa Rita, e, hoje, vê as paredes de casa ruírem, o chão afundar e a pneumonia tomar conta do pulmão, adoecido pela umidade da casa inteira. O desejo é um só, imediato: "sair daqui."
Foto: FOTO: FABIANE DE PAULA

Viver sob um teto com risco constante de desabar ou sob teto nenhum? O dilema é duro, inimaginável para quem tem paredes firmes, secas e seguras. Não é o caso de, pelo menos, 130 mil famílias em Fortaleza, que compõem o déficit habitacional da capital cearense por residirem em estruturas inadequadas. De acordo com a Defensoria Pública do Ceará, o número é confirmado pela Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor).

Entre 2017 e agosto de 2019, quase 4.500 atendimentos foram realizados no Núcleo de Habitação e Moradia da Defensoria Pública do Ceará (Nuham). Só neste ano, foram 1.147, entre pedidos de aluguel social, regularização de ocupações, desapropriações e demolições de domicílios, indenizações, e assistência a famílias expulsas por facções criminosas e a pessoas vivendo em áreas de risco.

302 mil
moradias no Ceará. Pesquisa nacional da Fundação João Pinheiro (FJP), de 2015, apontou que o déficit habitacional no Ceará era de 302.623 moradias. NA RMF, era de 147.111

A Habitafor confirma, em nota, que o sistema de sorteio eletrônico de moradias populares da Prefeitura conta com 160 mil inscrições, e que esse "não representa necessariamente um déficit, mas pessoas que desejam ser atendidas pela política habitacional". O texto acrescenta que "6.970 unidades habitacionais estão em construção", e que mais de 22 mil já foram entregues na gestão.

"O programa Minha Casa Minha Vida não está atendendo às necessidades, e a Habitafor não tem um programa próprio. As entregas de unidades estão muito aquém do déficit habitacional de Fortaleza. A população fica sem acesso, aumenta a demanda por aluguel social, e a Prefeitura não dá vazão, alega que só há 700 vagas autorizadas e que todas estão preenchidas", pontua o defensor público do Nuham, José Lino Fonteles.

Desigualdade

A demanda é urgente: todas as regionais da cidade têm, pelo menos, um conjunto de famílias vivendo em áreas de risco, conforme o Fortaleza em Mapas, sistema de dados georreferenciados da Prefeitura. Na Regional II, a mais rica, bairros como Meireles e Dionísio Torres não têm moradias neste perfil - mas a pobreza também permeia esses locais. Comunidades como Titanzinho, Pau Fininho e do Trilho, por exemplo, estão, respectivamente, no Mucuripe, no Papicu e na Aldeota.

Os assentamentos precários se concentram, contudo, nas Regionais I, V e VI, as mais castigadas da cidade. É na VI onde fica a Comunidade Santa Rita, próxima à gigante Arena Castelão, e composta por cubículos em que se vive em condições sub-humanas, principalmente após os rastros da quadra chuvosa de 2019.

Na casa de Francisca Raiane Costa, 22, por exemplo, o banheiro está inundado pela água da fossa, assim como o quintal. Segundo ela, não adianta mais limpar. "Se a gente tivesse opção de sair pra outro canto, já teria ido. Tem casa que o risco tá em cima, toda rachada. Na nossa, tá embaixo, com o chão afundando. A casa é toda úmida. Eu e minha mãe, de 53 anos, todas duas teve chikungunya", relata.

Legenda: O banheiro de casa está inutilizado, inundado pela água podre da fossa. O quintal também, "e não tem jeito". O chão inteiro da casa de Francisca Raiane, 22, é coberto por tábuas de madeira, para os pés não tocarem direto na lama. Partes do chão afundaram, as paredes já indicam o mesmo destino, e só quem dorme sem preocupação ali são os incontáveis gatos, cobertos de mosquitos. Os sonhos da jovem "não são grandes: é só uma casa digna".
Foto: FOTO: FABIANE DE PAULA

A situação precária já se estende por três anos, mas "piora em tempo de chuva, a água vai até a sala". É assim também na casa de Maria Ângela Silva, que vive na Santa Rita há quase 30 dos 48 anos de idade. Divide as paredes rachadas e mofadas, parte já desabada, com o marido, o filho e, agora, a pneumonia. "Meu maior sonho é sair daqui, porque não adianta reformar. É derrubar e fazer de novo, tá tudo afundando. Tenho até medo de ir no banheiro e o teto cair na minha cabeça. Tomo banho é no quintal", diz, com a tosse constante roubando os resquícios de energia.

Regularização

Entregou, então, a luta por moradia digna nas mãos da costureira Maria Roseli da Silva, 49, que acompanha junto à Defensoria a falta de respostas do Poder Público. Roseli foi uma das fundadoras da Santa Rita, quando, nos anos 1990, o terreno foi designado à construção de um conjunto habitacional. O problema é que as casas começaram a ser erguidas de forma irregular, fora dos limites e sem apoio técnico, de acordo com a líder comunitária. Nenhuma das 90 residências é regularizada.

Legenda: Numa comunidade que já não tem forças para buscar os direitos, Maria Roseli, 49, assume a tarefa por todos. A costureira, que faz vezes de líder comunitária, ajudou a construir as habitações que, hoje, sucumbem à falta de estrutura. Já viu a própria casa virar piscina, na quadra chuvosa de 2019. Mas tudo o que quer agora "é que reformem e ajeitem tudo". Porque as raízes e os laços sociais, desde 1990, estão atados ali, no solo castigado, mas ainda verde.
Foto: FOTO: FABIANE DE PAULA

"Quem construiu tudo foi nós, em mutirão, os esposos e as mulheres. O que a gente quer é que eles tirem as ocupações e façam o conjunto como era pra ter sido, com saneamento, com estrutura", defende. "Aqui é só a calamidade. Nosso sonho, o que a gente quer e vai lutar pra ter, é ajeitar tudo. Em pleno verão a gente dentro da água da fossa? Nós não pode continuar num negócio. Nós é gente!", descreve Roseli, com palavras atropeladas de quem tem coisa demais a pedir.

Legenda: No quintal enlamaçado de ngela, a vizinha Roseli mostra os danos e a parede que não aguentou esperar por possível reforma, e ruiu
Foto: FOTO: FABIANE DE PAULA

Para o defensor Lino Fonteles, "é evidente que não tem habitação nem aluguel social para todos os que precisam". "A solução mais viável para os problemas habitacionais de Fortaleza é a regularização fundiária. Muitas famílias preenchem os requisitos: das 10 mil que têm ações aqui, pelo menos 8 mil atendem", calcula. "É a solução menos onerosa às pessoas e ao Poder Público. Uma habitação não se constrói da noite pro dia, o custo é muito alto, cerca de R$ 80 mil por unidade", estima Lino, ressaltando, porém, que "algumas famílias estão em áreas verdes e de risco, sendo necessário projetos específicos".

Sobre a regularização fundiária em áreas de risco, a Habitafor informa que realiza "melhorias" constantes, bem como reassentamento de moradores. A Pasta diz ainda que mais de 5.051 famílias receberam o 'papel da casa', 1.039 habitações passaram por melhorias, 1.500 tiveram acesso a saneamento básico e outras 1.200 famílias em situação de rua e assistidas pelas ações de urbanização são atendidas pelo Programa de Locação Social. A Pasta não se manifestou quanto à situação da Comunidade Santa Rita.

Ilegal

Além de descumprir a Constituição Federal e a Declaração dos Direitos Humanos, que asseguram a todos o direito à habitação, a deficiência do cenário em Fortaleza vai de encontro também ao próprio Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHISFOR), no Fortaleza 2040, planejamento de estratégias a serem implementadas a curto, médio e longo prazos na cidade.

Entre os objetivos gerais estão "garantir o direito universal à moradia digna, democratizando o acesso aos serviços públicos de qualidade, priorizando programas e projetos para famílias de baixa renda, ampliando a oferta de habitações e melhorando as condições de habitalibilidade".

O PLHISFOR pontua entre as diretrizes a "garantia do direito à terra urbana e ao saneamento ambiental", bem como a "promoção da regularização fundiária dos assentamentos precários e informais". O plano prevê ainda a "criação de serviços públicos de assistências técnicas nas áreas jurídica, de arquitetura e engenharia para atendimento da população de baixa renda" e a "ampliação da produção e do financiamento habitacional de interesse social". O que, na prática, é só teoria.

Cagece

Sobre implantação de rede de esgotamento sanitário na Comunidade Santa Rita, no Barroso, a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) informou, em nota, que "o projeto encontra-se em fase captação de recurso junto ao Ministério das Cidades para execução da obra". E que, por enquanto, "o descarte correto dos efluentes é de responsabilidade dos moradores".

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