Falta de cuidadores dificulta educação de crianças com microcefalia

Após quatro anos do surto de Síndrome da Zika Congênita no Ceará, famílias ainda enfrentam impasses ao buscar profissional de apoio escolar na rede municipal; Secretaria Municipal de Educação diz garantir auxílio necessário

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Em alguns casos, as mães precisam ficar com os filhos nas salas de aula
Foto: FOTO: NATINHO RODRIGUES

O ano de 2015 foi um dos mais marcantes para a história recente do Ceará, do ponto de vista social, econômico e científico: foi lá que se iniciou o registro de nascimentos de bebês com Síndrome da Zika Congênita (SZC), da qual um dos efeitos é a microcefalia. Só naquele ano, foram 53 casos confirmados. Em 2016 e 2017, mais 102. Os números zeraram em 2018 e no ano passado. Hoje, os primeiros bebês já começam a entrar no quarto ano de vida e, além dos desafios de acesso pleno à saúde, precisam driblar barreiras para garantir o direito à educação pública e de qualidade.

Atualmente, 14 crianças com microcefalia associada ao zika vírus estão matriculadas em creches e escolas da Prefeitura de Fortaleza, conforme a Secretaria Municipal de Educação (SME), "sendo devidamente assistidas no processo educacional, de acordo com as suas necessidades específicas, assegurando os suportes e recursos de acessibilidade física e pedagógica".

No total, 332 profissionais de apoio escolar acompanham nas escolas municipais os estudantes com diversos tipos deficiências. A quantidade de "cuidadores" vinculados exclusivamente às crianças com síndrome congênita não foi informada pela Pasta.

Um dos matriculados na rede é Nicollas, que completou 4 anos de idade neste mês. Em 2016, ele foi uma das 101 crianças nascidas com SZC, identificada na 36ª semana de gravidez da dona de casa Naiza Santos, 23. "A gente não tinha a mínima ideia do que era microcefalia, então fomos consultar o 'doutor internet'. Se for causada pelo zika, a criança não tem controle de tronco, tem problema de refluxo, dificuldade pra deglutir, tomar água... É um mundo novo, todo dia a gente continua aprendendo a lidar", conta.

Em agosto de 2019, Naiza matriculou o pequeno no Centro de Educação Infantil Professor Carlos Roberto Martins Rodrigues, no bairro José Walter, e recebeu o comunicado para início das aulas só dois meses depois, em outubro.

"Isso já com acordo de que ele não teria cuidadora ainda. Tive que ir pessoalmente ao Distrito de Educação 4 (no bairro Montese) apresentar um laudo, e mesmo assim eles falaram que o Nicollas precisava passar por avaliação pra saber se realmente tem necessidade de acompanhamento. A gente continua aguardando", lamenta a dona de casa.

Para Naiza, a inclusão do filho na rotina escolar vai ser positiva em diversos aspectos e poderá inclusive impactar na própria saúde da mãe.

"Ano passado, ele às vezes não ia pra aula porque não tinha como deixar sozinho lá, e eu não teria como ficar acompanhando. A escola é muito importante no desenvolvimento da cognição dele, de entender, conhecer, do contato com as crianças, que vai ser muito bom. Espero ansiosamente que venha a cuidadora, até pra gente descansar um pouco, ter um tempo pra se cuidar física e psicologicamente. Essa caminhada de quatro anos tem sido bem cansativa", declara a jovem, cuja rotina é voltada especialmente para Nicollas.

Desistência

Para a dona de casa Sara Damasceno, 24, a caminhada de tentativas de matricular e manter Jennifer, de 3 anos e 10 meses, na escola foi encerrada. A desistência veio após conseguir vaga em uma creche municipal, mas não ter, na prática, a assistência de que precisava.

"Este ano, não fui mais atrás, não. Desisti. Quando consegui vaga pra ela na creche, tinha cuidadora, mas ficava com ela e outras crianças, e não sabia cuidar, era incapacitada. Achei melhor não levar mais minha filha, eu mesma cuidar em casa", relembra.

A má experiência bloqueou a vontade e a capacidade de buscar, novamente, o direito da filha de estudar e ter um acompanhamento escolar adequado. "Ela tá só em casa e indo pra fisioterapia, fonoaudióloga e terapia ocupacional. Eles sempre recomendam e cobram que ela vá pra escola, mas no momento não quero. Fiquei muito abalada, tô com receio de começar todo esse processo de novo", revela.

Para Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública do Estado, é importante que as mães e pais insistam na busca pelo direito à educação pública, inclusive sob assistência do órgão. "É direito delas e dever da escola fornecer esses profissionais de apoio. Tem criança que não consegue ir ao banheiro, se alimentar, outras já são mais autônomas. Cada uma tem tratamento diferenciado. Em alguns casos, resolvemos junto à SME, e o profissional logo é designado. Em outros, precisamos entrar com demanda judicial", explica a defensora.

Durante todo o ano de 2017, cerca de 40 famílias entraram com procedimentos administrativos no NDHAC para solicitar a presença de "cuidadores" nas salas de aula da rede pública. No ano seguinte, em 2018, foram 18 solicitações, número que aumentou para 31 casos em 2019.

A maioria das demandas é solucionada de forma administrativa, segundo a defensora, quando, por exemplo, "não existe diferença entre o laudo elaborado pela escola e o que a mãe da criança leva à instituição". Outras situações vão parar na Justiça, "seja pela ausência de profissional de apoio ou divergência de laudos".

A defensora ressalta, porém, que todos os casos devem ser levados adiante pela família. "Nos casos em que a criança tem direito e o Município não garante, judicializamos também o dano moral, por todo o constrangimento que a mãe passa nesse processo de busca por um direito garantido tanto na Constituição como na Lei de Inclusão", alerta Mariana Lobo.

Demora

Questionada sobre o prazo para chegada dos "cuidadores" e o preparo deles para as atividades, a supervisora do Núcleo de Educação Inclusiva e Diversidade da SME, Vivian Salmito, garante que "na hora em que a necessidade é comunicada, o processo para atendê-la já é iniciado".

"Muitas vezes, temos o profissional de apoio, mas a criança se afasta, até por orientações médicas. Além disso, temos buscado atender essas demandas específicas com capacitações para as nossas equipes escolares, junto ao Nutep (Núcleo de Tratamento e Estimulação Precoce). Temos crescido para garantir essa qualidade", aponta Vivian.

A permanência da mãe junto ao filho na sala de aula, opção que em muitos casos se demonstra como a única para garantia do acesso à educação pública, é contraindicada pela supervisora.

"Não queremos que isso aconteça, porque atrapalha a autonomia da criança. Nós entendemos que é difícil, devido às necessidades das crianças, mas a orientação é que a mãe fique apenas no período de adaptação. Depois, o profissional de apoio pode ficar exclusivo com o aluno", afirma.

A presença de crianças com deficiência e com a Síndrome da Zika Congênita é, contudo, "indispensável". "Oportunizamos tanto para elas quanto para as outras crianças a oportunidade de conviver com as diferenças. Vão poder participar ativamente de tudo o que é proposto, ter contribuições para o processo de desenvolvimento e, além disso, ganhar o primeiro espaço de convivência social", avalia a representante da SME.

 

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