Estrangeiros africanos encaram intolerância no Ceará

Sem um passado escravocrata, quem cruza o Atlântico para viver no Estado - pioneiro na Abolição - ainda vivencia constrangimentos realçados por olhares e palavras hostis

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@diariodonordeste.com.br

Decorridos 130 anos da Abolição da Escravatura, muitas correntes ainda precisam ser quebradas no Brasil - herdeiro dos três séculos da ameaça do açoite sobre o negro. E quem não nasceu no País, alheio a tal legado, precisa testemunhar uma ciranda de barbáries - da omissão silenciosa à ferida física. Africanos que hoje vivem no Ceará esbarram em situações vexatórias, muitas vezes diárias, simplesmente por apresentarem uma característica gravada nas próprias células.

"Lá fora, a gente vê o Brasil de novela, aquela maravilha. Mas nem tudo é maravilhoso", resume Narciso Agostinho, 33, que deixou Guiné-Bissau para viver em Fortaleza, há quase dez anos. A Capital do Estado vanguardista, que aboliu o regime escravagista em 1884, quatro anos antes do restante do País, é a mesma que o machuca com palavras-chicote: "macaco", "urubu", "de branco, só tem os dentes". Engole em seco, respira fundo. Pouco a pouco, vai construindo uma carapaça. "A gente se sente atingido, mas tenho os meus objetivos e não vou abaixar a cabeça por causa disso", resiste.

Legenda: No Dia da Consciência Negra (20), Narciso Agostinho reforça identidade: "Se eu não me orgulhar da minha cor, quem vai?"
Foto: Foto: Thiago Gadelha

Contudo, se manter por aqui não é fácil. Afinal, não quer pensar que é incompetente: mesmo tendo terminado duas faculdades, não consegue emprego formal. Enquanto isso, cansou de ver outros alunos ainda no primeiro semestre com estágio na área. Mas eles não eram negros.

"Às vezes, eu brinco: uma coisa que não posso deixar de ser é negro. Vou ser pelo resto da minha vida. Se eu não me orgulhar da minha cor, quem vai? Ninguém". O guineense sugere as mesmas questões para outros africanos que estão de mudança.

Autoafirmação

As inquietações também atingiram em cheio a universitária Evy Amado, 23, quando chegou à Capital depois de três horas e meia no avião vindo do insular Cabo Verde. "Lá, praticamente toda a população é de negros. Só tive professores negros. Aqui, comecei a reparar que a gente é visto de forma diferente. Empregadas, motoristas, garis: a maioria são negros", desabafa.

Só no Ceará, com as ideias em ebulição pela diferença de culturas, aprendeu a dar valor às raízes. "Quando cheguei, eu ainda alisava o cabelo. Mas pensei: por quê? Para me parecer com eles? Tive que me afirmar mesmo. Dizia: 'eu tô gostando dele assim, ele vai se manter assim'", bate o pé. Na redescoberta de si, contou com a sororidade de outras negras para se orgulhar da cabeleira.

De bem consigo, o desafio agora são os outros. "Eu estava na rua, um dia, e uma senhora botou a mão no meu cabelo. Foi meio constrangedor porque nunca tinha passado por isso. Não deu tempo nem de ver ela direito ou de ter reação. No mesmo dia, no Centro, um senhor gritou 'Ah, tira isso da cabeça!'. Mas era meu cabelo. Como assim tirar da cabeça?", indigna-se.

4,6%
autodeclarados negros. Os dados mais recentes do IBGE, de 2013, colocam o Ceará como o Estado da região Nordeste com a menor população reconhecendo ter a pele negra

Na leitura do professor Luís Tomás Domingos, docente moçambicano que gerencia o Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros (Neaab) da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), não há outra palavra: "é um choque". "Na África, todos que estão no poder, presidentes e ministros, são negros. Aqui no Brasil, o grande erro é comparar o africano a um escravizado. Os que chegam aqui não se consideram nesse patamar".

Segundo o estudioso, o preconceito se manifesta principalmente pelos olhares e pelas palavras, que passaram por uma deturpação histórica - afinal, "negro" é um verbete neutro que, como qualquer outro do dicionário, depende do contexto em que está inserido. "Aqui, ser negro é um grito de socorro, um grito de existência, para marcar que eu existo como ser humano também", defende.

Legenda: A discriminação racial no Brasil é visual, a segregação é tácita, não institucionalizada. Conta muito os traços fisionômicos objetivamente observáveis, principalmente a cor da pele associada a outros traços
Foto: Foto: Fabiane de Paula

É essa Consciência Negra que se faz necessária para a autoafirmação e o empoderamento dos afrodescendentes, na visão de Zelma Madeira, coordenadora especial de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial no Ceará. Para ela, a abolição brasileira foi inconclusa porque os negros foram libertados sem nenhuma política de reparação ou ação afirmativa que pudesse ajudá-los na inserção qualificada à sociedade.

Memória

"Nós trabalhamos para produzir a riqueza da nossa nação, mas não tivemos como acessar esses bens. A abolição inacabada é o que justifica a tremenda desigualdade racial que ainda enfrentamos na cena contemporânea", analisa, lembrando que, dos 13 milhões de brasileiros desempregados, mais de 64% são negros ou pardos.

Zelma propõe que os grupos negros se aliem e fortaleçam sua identidade e memória, visto que "não nos foi dado estímulo para que a gente tivesse essa pertença e esse orgulho de ser afrodescendente", explica. O tempo é agora: a Década Internacional de Afrodescendentes, instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU), segue até 2024.

Ninguém nasce racista. Se a gente aprende a ser racista, a gente pode aprender a não ser racista

Luís Tomás Domingos

Professor da Unilab

A juventude negra precisa ter outros destinos que não os homicídios ou o encarceramento

Zelma Madeira

Coordenadora especial

Intercâmbio

Atualmente a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em Redenção, recebe 1.102 estudantes africanos. Cinco países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) integram a parceria: Guiné-Bissau (663), Angola (227), Cabo Verde (78), São Tomé e Príncipe (71), Moçambique (38) e Timor-Leste (25).

Os cursos com mais estrangeiros são Humanidades (218) e Engenharia de Energias (140). A Universidade Federal do Ceará (UFC) tem 81 estudantes africanos com status ativo, sendo 79 participantes do Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) e mais dois na Pós-Graduação. A maioria, segundo a instituição de ensino, vem de Cabo Verde, Guiné-Bissau e Angola.

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