Especialistas discutem a regulamentação polêmica da telemedicina

Documento que descrevia conceitos e obrigações da classe médica na atuação foi revogado pelo Conselho Federal de Medicina apenas 23 dias após ter sido publicado. Médicos que atuam na área e estudam desdobramentos divergem sobre pontos específicos da tentativa de resolução

Escrito por Cadu Freitas , carlos.freitas@diariodonordeste.com.br

Pouco conhecida de boa parte da população brasileira, a telemedicina existe no País, oficialmente, há pelo menos 17 anos. Tanto tempo, porém, não foi suficiente para que a prática fosse debatida de forma pública ou largamente utilizada nas unidades de saúde. Enquanto a evolução dos sistemas tecnológicos confirmava que práticas manuais poderiam ser automatizadas, a discussão sobre a temática no País não progrediu – pelo menos até agora.

Em 3 de fevereiro deste ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) – órgão responsável pela normatização e avaliação da atuação da categoria médica no Brasil – publicou a resolução nº 2.227/2018, que tinha como principal objetivo regulamentar a telemedicina em todo o território, permitindo serviços antes sequer conceituados, como a teleconsulta, o telediagnóstico e a telecirurgia, bem como suas obrigações e direitos.

Entretanto, apenas 23 dias após a publicação, em uma reunião extraordinária, o CFM revogou a regulamentação aprovada. Em informe, o órgão disse que recebeu mais de 1,4 mil contribuições de médicos para alterações nas propostas, além do “clamor de inúmeras entidades médicas” por mais tempo para análise do documento e a necessidade de prazo maior para finalizar “as etapas de recebimento, compilação, organização, apresentação e deliberação sobre todo o material já recebido e que ainda será recebido”.

Divergência interna

“Houve um pânico na área médica pelo entendimento errado e superficial. Ninguém conhecia muito bem o que é telemedicina e de repente surgiu uma informação que alguns poucos começaram a irradiar”, afirma o professor da Universidade de São Paulo (USP) Chao Wen, que integrou a Câmara Técnica de Informática em Saúde do CFM. Segundo ele, apenas dois pontos da regulamentação foram criticados por entidades da classe, sendo eles relativos à categoria de teleconsulta.

Conforme o texto cassado, a prática poderia ocorrer desde que houvesse contato presencial anterior entre médico e paciente e/ou atendesse a áreas geograficamente remotas. No entanto, entidades da classe consideraram que não há especificidade na distância geográfica e avaliaram que a falta de definição poderia tornar a teleconsulta uma ação desenfreada, aumentando, desta forma, a distância entre o médico e o paciente.

De acordo com o professor Wen, a pressão por esses termos interferiu na diretoria do CFM, o qual agiu para “apaziguar os ânimos”. “Eu nunca fui a favor da simples revogação. Não temos o direito de simplesmente revogar, temos a obrigação de até o meio do ano aprimorar os itens que as pessoas acham que têm que ser melhorados e devolver pra sociedade de uma forma madura”, afirmou, considerando a prorrogação como a melhor saída.

Teleconsulta

O presidente do Sindicato dos Médicos do Ceará, Edmar Fernandes, por sua vez, discorda com relação à crítica apontada ao texto da resolução. Embora considere que a telemedicina seja “inevitável”, ele é crítico nato da teleconsulta. 

“O que caracteriza uma consulta médica é a relação que o profissional tem com esse paciente, inclusive ouvindo e examinando. No momento em que eu não tiver isso, descaracterizo a consulta médica, que é a base da medicina”, argumenta. E questiona: “quem é que sai ganhando se você liberar a consulta virtual?”. Para ele, grandes corporações que venderiam planos para o usuário poder ter consultas virtuais. 

De acordo com o coordenador do Núcleo de Tecnologia e Educação a Distância (Nuted), da Universidade Federal do Ceará (UFC), Luiz Roberto Oliveira, muitas pessoas se posicionaram contra a resolução baseadas em raciocínios “preconceituosos”.

“Quantas vezes você vai ao médico e ele não toca em você, mas consegue identificar (a enfermidade)? É claro que a presença é importante. Mas, em muitas situações, você pode hoje, com o recurso tecnológico, dar atenção a um paciente sem necessariamente ser cara a cara. Isso é um mito”

Apesar de a posição do professor da USP Chao Wen ser convergente com a do especialista da UFC, o paulista sugere alterações. Segundo ele, se a teleconsulta fosse padronizada por cada área, o ganho seria melhor. “Ter que ‘apalpar’ o paciente muda de especialidade para especialidade. A teleconsulta em oftalmologia é diferente da teleconsulta em dermatologia”, avalia.

“Precisa haver algo decidido como legal dentro da legislação nacional, que é o que acontece nos outros países. Depois essa lei precisaria ser regulamentada. Em cima dessa regulamentação, cada Conselho deve dizer o que é possível, quais são as obrigações, as responsabilidades e tudo”, enumera o professor Luiz Roberto.

Corpo médico

Recentemente, antes da revogação da regulamentação da telemedicina, de acordo com o presidente do Sindicato dos Médicos do Ceará, um hospital de Fortaleza avisou que iria adotar a teleconsulta a partir de abril, demitindo, assim, os cardiologistas do seu quadro clínico. Se um paciente necessitasse de atendimento cardiológico, seria encaminhado a uma consulta virtual.

Segundo Edmar Fernandes, o hospital foi notificado a suspender a conduta antes da implantação porque a resolução não estava mais em vigor. 

“É um exemplo prático do que pode vir a acontecer se for adotada a resolução daquela forma. Por isso ela foi revogada”, diz.

Para Chao Wen, porém, essa visão diverge do objetivo da regulamentação. “A telemedicina não tem função de diminuir vaga de emprego, o que ela tem é de aumentar a logística e ampliar a cobertura. As pessoas estão vendo de uma forma míope”, alerta.
 

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