Engrenagem da folia

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
Legenda: Taísse Fernanda e Francisco Marcos vendem comida em um dos polos de Carnaval
Foto: Foto: Kid Júnior

Varre, puxa cabo, corta o alimento, arma a tenda, pinta o rosto alheio, levanta o isopor no meio da multidão, oferta a mercadoria, empurra o carro, monta o pratinho, serve... Não, os dias que precederam esta Quarta-Feira de Cinzas não foram especificamente só de folia em Fortaleza. Eles foram também de diversão (e que bom!), mas não somente.

"Alguém precisa trabalhar", diz a frase-constatação que repetidas vezes soa como um desalento no cotidiano. Mas, será que é sempre mesmo? Inclusive no Carnaval?

Sim! Por escolha, necessidade ou obrigação, os alguéns trabalhadores continuam dando conta dos afazeres, ainda que o mundo tenha "parado" nos últimos quatro dias. E nesse movimento rodam a engrenagem de funcionamento da vida cotidiana até mesmo no Carnaval.

Nas avenidas, praias, praças, supermercados, deslocamentos, ruas, há quem se mantenha ocupado, garantindo o andamento da rotina, inclusive, a de quem, nesses dias tentou "esquecer" o medo e a ausência de segurança e experimentou a sensação de ânimo e leveza. Naquela programação. Naquele escape. Naqueles encontros e instantes tão necessários. 

Os anônimos trabalhadores asseguraram a comida e a bebida. Fazem com que os foliões cheguem aos locais desejados. Garantem que quem está prestes a desfilar vai brilhar, munido de toda a estrutura necessária possível. Sustentações - garantidas por esses trabalhadores anônimos -, inúmeras vezes, carregadas literalmente nas costas, tal qual o aparato na Domingos Olímpio. Ou nos próprios braços, como fazem os ambulantes dotados de adereços para abrilhantar desconhecidos na Praia de Iracema. 

Algumas estruturas existem porque o trabalho de alguém as garantiu anteriormente. No Carnaval essa lógica não desaparece. Pelo contrário. Se reforça. Mesmo que exista a vaga ideia de que "todo mundo parou para aproveitar a festa" nos quatro (fantásticos) dias.

É no meio do arranjo da avenida, nos preparos para o desfile que a vendedora de algodão doce oferta "1 pacote por 3 reais ou 2 por 5". De cores azul ou rosa.

Parar para aproveitar o Carnaval, há muito tempo, não é desejo, conta entre uma venda e outra, Geilma Ferreira. O período fantástico para uns, não tem o mesmo encanto para ela. Resta manter o ritmo. Seguir com as mercadorias a fim de garantir a venda de, pelo menos, 70 pacotes. 

Esse ritmo de trabalho também é mantido por Taísse Fernanda junto ao esposo Francisco Marcos em sua barraca de comida no entorno de um dos polos carnavalesco. Dos dias de Carnaval, a expectativa é que a diversão só venha hoje. Todos os anos, nos dias de folia, o rumo é Aracati. Mas, em 2020,  a opção foi outra. Ficar na Capital e vender comida. Uma projeção de 50 pratinhos diários para os foliões que foram à avenida aproveitar.

Legenda: Pâmela de Sousa produziu brincos, tiaras e enfeites e os vendeu na Praia de Iracema durante os quatro dias de Carnaval
Foto: Fotos: Kid Junior

Na Praia de Iracema, entre músicas, bebidas, o colorido e a multidão, a vendedora Pâmela de Sousa, segue, junto à noiva, comercializando adereços. Brincos, tiaras e enfeites produzidos por elas. Há três anos, a necessidade é de trabalhar para "apurar mais" nesse período. Por isso, para o casal, o momento não é de entrega total ao lazer. Foi preciso reinventar a forma de vivenciar esse momento. 

Em outro ponto da cidade, Gilermano Bastos, há anos, escolhe curtir a festa de outro modo. Auxilia na produção de um dos maracatus que encantam na Domingos Olímpio. Pinta os rostos dos que vão desfilar, conserta fantasias, ajusta detalhes, empurra alegorias. São muitas as tarefas. E a festa vira trabalho e volta a ser festa depois. Ele percorre a avenida. Não com a glória dos brincantes. Mas com a satisfação de quem "às escondidas" faz aquele momento de êxtase acontecer.   

Legenda: Na Domingos Olímpio, Gilermano Bastos auxilia na produção dos maracatus
Foto: Foto: Kid Junior

A sensação é de que aqueles que permaneceram trabalhando - ainda que não libertos dos próprios dilemas - mesmo quando supostamente a cidade "parou", na realidade, são figuras tão necessárias quanto os triunfantes foliões, comprometidos antes de tudo com as próprias alegrias e prazeres. Na dinâmica descanso-festa-acontecimentos, os trabalhadores anônimos firmam e movimentam os bastidores da grande festa popular. 

É também, por essa garantia de retaguarda, que essa necessária festa existe e é possível. Uma repetição do movimento contínuo da vida cotidiana. Aquela que sem a força dos corpos e das mentes trabalhadoras não é capaz de mover-se em direção alguma. Que dirá avançar sobre os impasses e ainda assim ser colorida, criativa e até feliz.   

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