(Des)coberta do brilho e de si

Os cabelos brancos e lisos contrastavam com os loiros, ruivos, morenos, azuis e multicoloridos da festa que tem espaço para todas - e para que todas estejam onde quiserem

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br
Legenda: Expressões femininas concretas e simbólicas marcaram o cortejo que seguiu do Largo dos Tremembés ao Dragão do Mar
Foto: FOTO: THIAGO GADELHA

Ela sorri de um jeito que os dentes parecem estar untados com purpurina. Reluzem. É como se o mundo ao redor, todas as outras pessoas, os carros, as folhas das árvores, o batuque dos tambores, o vento, os sons... É como se tudo estivesse em câmera lenta, e ela inebriada no meio de um palco com tantos e nenhum espectador. Ela sorri e dança e gira, e os cachos castanhos esvoaçam na liberdade, presos apenas pelo suor da pele e, às vezes, pelo próprio... sorriso, porque na Quarta de Cinzas passada, ela já esperava por este dia. Vestida num body preto, a alma é viva e em cores.

Ele movimenta o corpo como que alternando o peso entre um pé e outro. Como um pêndulo ou um boneco de Olinda desajeitado, ele mexe tudo, menos o olhar - ambos os olhos fixos nela, numa expressão que seria indecifrável não fosse o sorriso apodrecido pelas intenções. Se ali é a liberdade que faz brilhar a alegria, ela foi aprisionada. Em uma fração de segundos, mão na nuca, tentativa de beijo, empurrão, tapa, confusão. Todo mundo já sabia, e dizia a lei, era importunação. Findou o Carnaval para aquele folião.

Domingo, apesar de tudo, era um novo dia, encorajavam as amigas. E ela, então - ao som de uma Chiquita Bacana que em 1949 já vestia o que queria -, voltou a constranger a imensidão do mar com uma energia e uma força que só poderiam mesmo vir dela. As pernas continuavam totalmente à mostra, sim, com a meia-arrastão. Não cedeu ao medo nem conteve a dança por nenhuma tensão. A cor do body havia mudado, era rosa, agora, e o decote só se permitiu cobrir por três palavras, à tinta preta: não é não.

Foto: FOTO: THIAGO GADELHA

Continuava livre, como deveria ser, mas queria um pouco mais - para si, para as outras. Sentiu incômodo agudo com a desconhecida assediada pelo cara fantasiado de super-homem, que entendia a máscara como passaporte ao corpo alheio, e achava que deveria se desculpar com o namorado, não com ela. Inquietou-se e a música perdeu a cadência, a graça, o sentido, quando viu a travesti ser transformada em alvo de chacota pelos quatro homens vestidos de líderes de torcida - camisa, saia, peruca e pompons dando rosto e corpo ao preconceito anacrônico.

Ânsia

Relembrou, ao olhar a mulher negra, cabelo crespo, sorriso imenso no rosto, os quase 365 dias sem Marielle Franco nem quaisquer explicações para a morte precoce e covarde da política e militante. Sentiu ânsia. Falta de ar - e nem era pela multidão que bagunçava a areia da praia ao som de músicas pop adaptadas ao ritmo de marchinhas. Tomou um gole da água gelada, jogou um pouco no rosto, olhou ao redor. Como se fossem crachás, placas azuis semelhantes às que identificam ruas sustentavam-se nos pescoços de foliãs e foliões. Alívio, ninguém esqueceu. Nem o período momino permitiu. Marielle, presente.

O olhar de esperança, aliás, se renovou um pouco mais quando ela avistou um andador estacionado. A dona dele, de 85 anos, dançava com as mãos, acompanhada de filha, neta, bisneta e olhos marejados que puxam lembrança e expulsam saudade. Os cabelos brancos e lisos contrastavam com os loiros, ruivos, morenos, azuis e multicoloridos da festa que tem espaço para todas - e para que todas estejam onde quiserem. Era o que aquela mulher ensinava à filha de no máximo 10 anos de idade, cuja blusa estampava: "Com mãe feminista, eu não cresço submissa".

Legenda: Nesta segunda-feira (24), há nebulosidade variável em todas as regiões com chuva no Cariri. Já nas demais regiões, chuvas isoladas
Foto: FOTO: THIAGO GADELHA

Mais à frente, quatro mulheres surdas se camuflavam em glitter e ensinavam sobre ritmo, empoderamento, comunicação, diversidade e necessidade de respeito; enquanto duas protagonizavam um beijo-dança, como valsa num centro de salão vazio. Nada mais importava. Afinal, o Carnaval é delas e ninguém é de ninguém, porque cada um é de si mesmo. E ela, depois de tudo e de tanto tempo, finalmente sabia.

E, então, se entregou à força que tinha e ao direito de vivê-la. Lembrou de continuar sorrindo, os dentes untados com purpurina. O mundo ao redor, todas as outras pessoas, os carros, as folhas das árvores, o batuque dos tambores, o vento, os sons... Tudo em câmera lenta, e ela inebriada no meio de um palco com tantos e nenhum espectador. Ela sorri e dança e gira e os cachos esvoaçantes, presos no rosto suado e no próprio... No próprio sorriso. Porque hoje é Quarta de Cinzas, e - apesar de tudo e sem pesar mais nada - ela já espera pelo próximo Carnaval.

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