Cotas raciais: fraudes alertam sobre necessidade de monitoramento

A reserva de vagas padece com fraudes por parte de candidatos não negros. Com a descoberta de irregularidades, as universidades têm adotado comissões de verificação para monitorar o preenchimento das cotas. No Ceará, o critério preponderante ainda é a autodeclaração

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@diariodonordeste.com.br
Legenda: Conforme a Lei Federal 12.711, que rege o sistema de cotas nas universidades, há reservas para candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas
Foto: FOTO: ALEX PIMENTEL

Ser negro ou negra por conveniência. No País em que historicamente há exaltação do branqueamento e punição de negros com, dentre outros, a construção de estereótipos negativos, as ações afirmativas, como as cotas no Ensino Superior, consideradas necessárias para a democratização do espaço universitário, padecem com fraudes. Ainda que episódicos nas instituições no Ceará, alguns registros dão conta da suposta tentativa de apropriação indevida das vagas dos cotistas por candidatos não negros nos últimos anos. No Brasil, universidades têm adotado comissões de verificação para monitorar o preenchimento destas vagas.

No Ceará, nem a Universidade Federal (UFC), nem a Universidade Estadual (Uece) detêm instâncias do tipo e utilizam a autodeclaração de pretos, pardos e indígenas como critério preponderante. Na UFC, o sistema de cotas sociais - aquele que leva em conta a origem do estudante e a renda familiar bruta por pessoa - é adotado desde 2014. As cotas étnicos-raciais estão incluídas nesta dimensão com uma espécie de "subcota".

Conforme a Lei Federal 12.711, que rege o sistema de cotas nas universidades, a instituição reserva 50% de suas vagas para alunos que tenham cursado integralmente o Ensino Médio em escolas públicas. Os demais 50% permanecem para ampla concorrência. Nas vagas destinadas a alunos oriundos das escolas públicas, há reservas para candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas.

Na Uece, as cotas sociais (e dentro delas as raciais) são admitidas desde 2015. A concepção é a mesma empregada na UFC. No Ceará, a Lei 16.197/2017 determina o estabelecimento de cotas sociais para acesso às instituições de Ensino Superior. A norma irá vigorar por 10 anos. Nos dois casos, não há cotas diretas pelo critério étnico-racial. Todas as reservas de vagas derivam de cotas sociais.

Conforme o Ministério Público Federal (MPF) no Ceará, entre 2017 e 2018, três casos foram registrados no órgão apontando supostas fraudes no preenchimento de vagas das cotas raciais na UFC. No Ministério Público Estadual, conforme relatou, em nota a Instituição, nas quatro Promotorias de Justiça de Defesa da Educação, em Fortaleza, "não tramita nenhum procedimento relacionado a fraudes à Lei de Cotas".

Registros

Em julho de 2018, o MPF expediu uma recomendação às universidades federais do Ceará (UFC, Unilab) e ao Instituto Federal para adoção de controle prévio de aferição dos requisitos para o ingresso no Ensino Superior por meio das cotas raciais. No documento, o procurador da República Fernando Antônio Negreiros Lima, considera que há fragilidade no sistema de autodeclaração e cobra a existência de mecanismos de controle sobre esse critério nos processos seletivos para acesso ao Ensino Superior no Ceará.

O documento indica que o controle prévio passe a ser adotado, admitindo como uma das dimensões o critério do fenótipo. Além disso, a recomendação explica que, caso as instituições optem por utilizarem uma banca verificadora como mecanismo de controle para aferição do preenchimento das cotas, elas devem priorizar o contato presencial com o candidato. A comissão deve ter uma composição mista dos membros, em termos étnico-raciais, de gênero, naturalidade e idade, incluindo representantes do corpo docente, discente e de servidores da instituição.

Na UFC, conforme informado pelo pró-reitor de Graduação, Cláudio Marques, não existe comissão de verificação de fraudes na Lei de Cotas. A cada concurso, relata ele, há uma média de quatro a cinco denúncias de ocupação de vagas destinadas a candidatos pretos, pardos e indígenas.

Questionado sobre como a universidade atua em casos de denúncia, Marques garante que a UFC "executa a Lei de Cotas na literalidade do texto legal, que estabelece reserva de vagas para autodeclarados Pretos, Pardos e Indígenas". O Ministério da Educação, informa ele, orientou todas as instituições superiores que "a autodeclaração é o documento necessário e suficiente para a pretensão e ocupação das vagas reservadas para tal fim". Na universidade, a possibilidade de criação das comissões de verificação são permanentes, aponta Cláudio Marques, e há indicação de aspectos positivos e negativos.

As dificuldades estão ligadas, sobretudo, às condições de execução dos trabalhos de verificação diante do volume de vagas e candidatos, da exiguidade e da fatalidade dos prazos do calendário do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) imposto pelo Ministério da Educação, além do calendário acadêmico da Universidade.

Na Uece também não existe comissão de verificação e, segundo a assessoria da instituição, já foi registrada uma denúncia por meio da Ouvidoria Institucional, relacionada à "cota social" de uma candidata. A possibilidade de criar alguma grupo de verificação, de acordo com a assessoria, "ainda não foi pensada pela Uece, uma vez que a própria lei defende a autodeclaração". A reportagem também solicitou informações semelhantes à Unilab e ao IFCE, mas até o fechamento desta edição não obteve respostas.

Possibilidades

Para a professora doutora Zelma Madeira, coordenadora e fundadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Afrobrasilidades, Gênero e Família (Nuafro) da Uece e titular da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial (Ceppir) do Governo do Estado entre 2015 e 2018, a autodeclaração, de fato, não tem sido suficiente e os movimentos de negros e indígenas apontam a necessidade de criação de instrumentos que possam monitorar a ocupação destas vagas.

"É necessário fazer o monitoramento da lei das cotas. Por quê? Porque estamos vendo as fraudes e se o movimento negro e indígena não estivesse denunciando, não há quem monitore. Precisamos de uma esfera para fazer a heteroidentificação. Porque quando pensamos a lei das cotas, pensamos que ia dar 'tudo certo'. Mas os problemas apareceram", explica Zelma.

Foto: Arte: Diário do Nordeste

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