Com o corpo no mundo

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Mulheres ocupam ruas, avenidas e festas como resistência e luta
Foto: Foto: Kid Junior

Este é um texto sobre ser mulher. É esta, aliás, uma das palavras mais fortes da nossa língua. Mu-lher. Transcende as sílabas, movimenta os músculos, os lábios, exige garganta. Requer força. Mulher. É o vocábulo certo para definir quem o define. É ser sangue no pulso, nas veias e nos olhos todos os dias. É ser falta de paciência com o patriarcado, que, cara... Já estamos em 2020! É exigir o direito de ser, de estar, de fazer ou de não querer nada disso. De jogar o corpo no mundo, na dança, na cama, no outro, em outra, e ele continuar sendo só dela.

No Carnaval e sempre, ser mulher é ser liberdade. E isso incomoda. A constatação de que "a liberdade da mulher incomoda a sociedade machista e gordofóbica" brota direta, crua e madura dos lábios de Carolina Azin, 24, foliã com paixão declarada pelos espaços da cidade, pelo gênero que carrega e pelo próprio corpo. Desde que se deixou envolver pelos braços de Ivete, Olodum e de todas as músicas tradicionais que ecoam no ciclo carnavalesco, ela reaprendeu a tomar posse do que lhe pertence. Um aprendizado, aliás, "infinito".

"O Carnaval de uma cidade representa muito o que ela tá vivendo, e Fortaleza começou a viver um momento muito diferente na história dela. Ou fui eu que comecei a enxergar isso. Consigo ver mais jovens ocupando as ruas, as pessoas sentindo a cidade, indo à praia nos fins de semana. No Carnaval, não é diferente: ele se tornou, pra mim, além de momento de muita folia, curtição e de viver todos os prazeres que a gente pode, um momento político. De você ocupar e tomar posse daquilo que me pertence: que é a cidade, que é o meu corpo".

Legenda: De corpo, alma e militância, Carol vive o Carnaval de Fortaleza como espaço de diversão e de luta por respeito e igualdade
Foto: Foto: Maria Martins

Habitar um corpo fora dos padrões estéticos tidos como ideais lançam a ela o desafio diário do autoconhecimento e da autoaceitação - reencontros que acontecem a cada dia de folia. "Nós, mulheres, somos tão limitadas pelos padrões, que temos vergonha do que habitamos, que é o nosso corpo. No Carnaval, aprendi a viver tanto a cidade como o meu corpo. Nele vem à tona a liberdade que já tenho em mim, de ser eu mesma, sair de body, hot pants, de expor minhas estrias e meu corpo maravilhoso", orgulha-se.

A liberdade, porém, ainda precisa se esgueirar de um obstáculo recorrente e, ano a ano, dia a dia, mais combatido: a importunação sexual. "Eu com calça de trabalho e blazer acontece isso, quiçá esbanjando liberdade. Por isso, o Carnaval se tornou político pra mim, porque é o momento que eu mais incomodo, e vou usar isso pra militar. Temos que ficar atentas às mulheres que estão passando por importunação, seja com namorado ou desconhecido, e não ter medo de segurar a mão dela, apartar aquilo e tirá-la dessa situação", reitera.

Uma passada de mão na cintura, nas nádegas, nos seios; uma puxada de braço, de cabelo, um "abraço"; uma cantada invasiva: não, nada disso "é coisa de Carnaval". Tudo isso, sob um "não", é crime. Este é o segundo período de folia com a Lei Federal 13.718/2018 - ou Lei da Importunação Sexual - em vigor, cuja violação penaliza o importunador com um ou até cinco anos de prisão, "se o ato não constitui crime mais grave".

Para Carol, é aí que a voz se ergue. "Vamos mostrar que a gente tá com o poder na mão. Chamar o policial, fazer um motim pra pessoa que importuna sair vaiada. Não ter medo de mostrar que você tem esse direito, que a pessoa está cometendo um crime. E evitar que ela repita esse ato com outra mulher".

Carnaval para mulher é difícil. Para mulher transexual, violento. Para mulher transexual negra, tortuoso. Essa é a identidade da cantora Yara Canta, 25, cuja folia só se desenha "entre poucos", entre amigos, em ambientes que permitam a ela os direitos de ser e de existir em segurança. "Fico receosa de estar em multidão, em qualquer evento já tenho um certo receio. Não me sinto segura. Ano passado, fui pro meio da rua, com meu grupo de amigas, aproveitei mais a programação de Fortaleza. Mas gosto mesmo é de ficar em casa ou na casa de alguém", conta.

Legenda: Conseguir viver a folia em meio a multidões com segurança é luta diária para a cantora Yara
Foto: Foto: Thiago Gadelha

A resistência a viver a liberdade que lhe cabe é, então, como um calo grosso e dolorido que nunca sara. "Quando você é mulher, em qualquer aspecto, sobretudo trans, na sua construção de pessoa você passa por tanta coisa a vida inteira que acaba se colocando nesse lugar de ter muito receio e cuidado, porque sabe que tá numa situação de vulnerabilidade muito maior. Todas essas questões de assédio e transfobia acabam me deixando cautelosa", desabafa.

Outra questão tão enraizada e, por isso, tão ultrapassada são as fantasias que satirizam, violam e tornam caricata uma coisa tão cara, valiosa e intocável: a existência do outro. "Me deixa muito enfurecida quando eu vejo gente usando fantasias racistas e transfóbicas. Gosto muito de usar meu cabelo bem armado, black power, bem volumoso. Ano passado, tava pintado de roxo, e foi um caos. As pessoas queriam pegar, achavam que era peruca. Quando a gente tá nesses locais, é surreal como acham que têm o direito de invadir seu espaço, chegar, tocar, querer saber se o cabelo é de verdade, se não é. Meu cabelo não é uma fantasia. É um elemento histórico de luta do movimento negro", indigna-se Yara.

É por esses relatos - e por diversos outros sobre importunação sexual, violência, racismo, LGBTfobia, gordofobia e todas essas palavras rotuladas de "mimimi" por quem agride e não quer admitir - que as ruas e avenidas devem ser tomadas e ocupadas pela diversidade.

Que se expulse da folia o que não nos serve, o que nos subjuga e impede. Que os sentidos se voltem aos sons, vibrações, cores e celebrações, e não às nossas roupas. E que somente o beijo da liberdade cale as nossas bocas.

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