Chuvas: 1.700 famílias de Fortaleza ainda não receberam visita da Defesa Civil

Pagamento de auxílio financeiro assegurado por lei pela Prefeitura de Fortaleza, no dia 27 de março, também segue pendente; cerca de 2.900 residências estão cadastradas pela Defesa Civil para obter assistência

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br
Legenda: A diarista Fayanni Oliveira viu a casa ser completamente coberta por um metro e meio de água suja
Foto: FOTO: JOSÉ LEOMAR

O dia estava clareando, ainda, quando a enchente começou a invadir a casa, sem cerimônias. A água subia tão rápido que nem deu tempo de subir os móveis e eletrodomésticos nos tijolos que, hoje, erguem do chão ainda molhado o pouco que sobrou. Colchões, guarda-roupas, fogão, máquina de lavar, sofá... No dia 24 de fevereiro, quando casas do Conjunto São Cristóvão ficaram alagadas após fortes chuvas, a diarista Fayanni Oliveira, 30, viu tudo ser completamente coberto por mais de um metro e meio de água suja.

Após perder as contas dos prejuízos, ela mesma virou um número. Consta, agora, entre cerca de 2.900 famílias da região cadastradas pela Defesa Civil de Fortaleza para receberem o auxílio de até R$ 1 mil assegurado por lei no dia 27 de março, que ainda não foi pago a ninguém. De acordo com o titular da Coordenadoria de Articulação das Regionais (Coareg), Renato Lima, os primeiros pagamentos do benefício devem ser realizados até sexta-feira (5).

Até lá, famílias como a de Fayanni - que mora com o marido e os filhos de 4, 9 e 13 anos - improvisam para manter um cotidiano que literalmente escorrega nos efeitos da enchente.

Moro aqui há oito anos e nunca vi tanta água. A gente está querendo fazer uma obra aqui pra subir o nível da casa, mas tem medo de desabar, porque antigamente passava um rio aqui. Chuva pra mim, agora, é um pânico. Quando meu caçula acorda e tá chovendo diz logo 'mamãe, vai alagar de novo, vamos embora daqui'. Eu digo 'meu filho, a gente não tem pra onde ir'. Pra onde que nós vamos?".

Alojamento

O único lugar para o qual puderam correr e ficar por três dias quando a casa se assemelhou a um tanque d'água foi o Cuca Jangurussu - onde ainda se abrigam, conforme a Coareg, 19 famílias desalojadas, aquelas que têm casas, mas não podem voltar devido ao risco de novas enchentes. Uma delas é formada por Joana (nome fictício para preservar identidade), os filhos e outros parentes que perderam tudo após as enchentes.

"Na primeira, a água bateu no pescoço. Na segunda, eu já não tinha mais nada a perder e vim pra cá. Estamos aqui há dois meses, recebendo o teto da quadra e três refeições por dia. Mas não falaram nada sobre a gente voltar pra casa ou receber o dinheiro que prometeram. Minha casa está lá, vazia", lamenta a moradora do Conjunto São Cristóvão, que afirmou não poder se identificar "porque o pessoal do Cuca disse que a gente seria expulso se desse entrevista". A suposta proibição de falar foi totalmente negada pela assessoria de comunicação do equipamento público.

Quem permaneceu em casa mesmo após a tragédia também segue amargando os prejuízos, como a artesã Betiane Santos, 34 - cuja perda mais dolorosa entre tantas foi a do material de trabalho. "Passamos momentos de terror, situação que nunca imaginei passar. A comunidade perdeu tudo. Tudo. Mas o que me deixou mais triste foi perder meu estoque de linhas de crochê, pedaços de tecido, minha máquina de costura... É o meio que eu tenho de sustentar minha família e ficou tudo boiando", relembra.

Visitas

Desde a enchente de fevereiro (quando a água "entrou pelos bueiros do quintal, e os vasos sanitários começaram a transbordar"), pelo menos mais dois alagamentos já aconteceram lá. "Se tá chovendo direto, a gente já não dorme, porque tem medo de perder o resto que sobrou. O dinheiro que a Prefeitura prometeu eu tô esperando pra repor minha geladeira", aponta Betiane, com tristeza compartilhada com a dona de casa Ana Lúcia Bonfim, 45.

"O que passei com meus filhos pra gente ter o que perdeu foi uma eternidade, e perdemos em segundos, num piscar de olhos", emociona-se Ana, moradora de uma das regiões mais afetadas pelo avanço das águas. O que conseguiu salvar foi geladeira, um ventilador e os filhotes de gato recém-nascidos. "Minha filha tá dormindo no colchão úmido, não tem outra solução. Nossas roupas estão molhadas, tudo em cima da cama. Não recebi nem uma visita da Defesa Civil. Do Poder Público, nem um pacote de café", relata.

Cadastro

De acordo com o coordenador das Regionais, Renato Lima, mais de 1.200 visitas para confirmar o cadastro das famílias que alegaram prejuízos após as enchentes foram realizadas até a última sexta-feira (29). Pela conta, ainda faltam cerca de 1.700 - que, conforme o titular da Coareg, devem ser feitas em até 15 dias. "Precisamos visitar rua a rua, casa a casa, para confirmar esses prejuízos. Isso envolve imprevistos. Em dias de chuva, os agentes que deveriam fazer isso estão socorrendo as pessoas", justifica Renato.

A distribuição dos auxílios de até R$ 1 mil seguirá, segundo o coordenador, critérios técnicos. Em março, foram definidas "poligonais de alagamento", ou seja, áreas comprovadamente afetadas pelas enchentes. Para iniciar os pagamentos, é preciso confirmar quantos dos 2.900 grupos cadastrados estão na delimitação. "Pela minha conta, 80% estão nos bairros Jangurussu e Barroso. Aí teremos de aguardar as outras confirmações de cadastros", pontua Renato Lima.

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