Chocolate caramelo

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Pensei que, de alguma forma, se eu lhe desse um pouco da minha parte, o futuro pudesse ser um pouco menos amargo. Que dê o famigerado "tudo certo"
Foto: Foto: Natinho Rodrigues

Oi. Nem sei porque escrevo, porque provavelmente você ainda nem saiba ler. Também não sei seu nome, ou seu endereço, o que talvez possa atrapalhar a viagem destas linhas. Mas lembro de você. De segunda, porque primeiro, mal notei, dos meus quase um e oitenta, toda a altura dos seus quatro ou cinco anos de vida. Desculpa, é que meus olhos procuravam afoitos a melhor oferta para minha fome de doces.

Era um domingo bem quente, lembra? Estávamos ali, refugiados num miniuniverso esfriado por ar-condicionado, simulacro de Itália em área nobre de Fortaleza, a babar por uma vitrine de delícias geladas de cores berrantes. Mesmo adulto, não perdi o paladar infantil, confesso. E você, gosta de quê? Não perguntei naquela oportunidade.

Lembro mesmo quando você se fez notar. Cutucou meu quadril e sussurrou com aqueles olhos pidões, tão grandes como duas bolas de sorvete:

- Tio, compra um pra mim?

- Tenho não, amiguinho - respondi, mais por praxe que por consciência.

Já tinha feito assim centenas de outras vezes, no sinal fechado, na calçada da rua, na areia da praia. Ali seria só mais uma fotografia para meu álbum de recusas. Você baixou a cabeça, murchou um pouquinho os ombros e continuou pendurado na vitrine. Passei, no débito, duas bolas de leite congelado no valor de um galeto que a gente aprecia lá em casa, aos sábados.

Vi quando você desistiu de mim e pediu o mesmo favor ao próximo da fila. Ele, ou ela, não sei, nem se deu ao trabalho de tirar os óculos escuros para dizer não. E você murchou mais um tanto, feito carne de hambúrguer torrando na margarina. Naquela hora, esperando pela minha vez de escolher, eu nos entendi: ambos com chocolate na cabeça e chocolate na pele. Mesma cor, mesma vontade, e um mar de diferenças.

Tive uma daquelas crises de consciência, com uma sintomática apneia pelo que nos tornamos como sociedade. Não sei nada sobre você, mas - perdão - suas roupas surradas e esbranquiçadas de tanto beber alvejante me fizeram supor aquele estereótipo. Menino sem pai, outros cinco irmãos e irmãs, vai pra escola pela merenda, joga pelada num campinho até lascar o dedão e pega carona num busão, aproveitando para pedir trocados pra mãe.

Pensei que, de alguma forma, se eu lhe desse um pouco da minha parte, o futuro pudesse ser um pouco menos amargo. Que dê o famigerado "tudo certo", e você tenha oportunidades importantes nos anos que estão por vir. Dividi metade das bolas, chocolate e caramelo, nossas cores, em um copinho transparente descartável. Passei-o à sua irmã, ou prima, ou vizinha mais velha, para que o entregasse.

Continuei tomando minha metade e lembrei do Cauê, aba reta pra trás, tatuagens cobrindo o braço, chocolate como a gente, me contando:

- Eu nunca apanhei de polícia lá na comunidade.

Nunca entendi aquele tom de orgulho. Nunca passei por algo parecido. Espero que nem você precise passar. Acho que as pessoas preferem chocolate numa bandeja gelada do que na pele das outras.

Terminei meus pedaços, copinho no lixo. Na última vez em que o vi, você saía pela porta, contente, com o descartável numa mão. Na outra, um potinho de verdade com a marca, cheio de morango e menta, presente de alguém disposto a ver um sorriso ou a se ver livre da importunação. Boa sorte, amiguinho. Quando puder, se der, me diz por onde você anda.

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