Casas 'sem papel' criam áreas informais com déficit infraestrutural

Existe um vazio cadastral em algumas regiões de Fortaleza e, com isso, o poder público não tem conhecimento sobre a real forma de ocupação. O efeito são territórios com falta de infraestrutura e moradores sem segurança patrimonial

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
Legenda: Para João Batista, os "papéis" que comprovam que a casa é sua são as contas de água e luz
Foto: Foto: Thiago Gadelha

Não tem papel da casa. As residências foram construídas pelos próprios donos e a vizinhança se organizou, no mesmo movimento, ao redor. Determinados territórios de Fortaleza seguem com lacunas históricas de regulamentação de moradias. Na falta da legalidade, sobram insegurança para quem habita esses imóveis, ausência de controle urbanístico por parte do poder público e falhas no cadastramento de informações para atendimento de demandas estruturais básicas. Uma Fortaleza informal erguida e habitada por centenas de famílias.

Não há número certo da quantidade de imóveis sem registro na Capital. Mas, segundo a Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor), nos últimos anos, foram entregues 12.980 títulos de "papel da casa". Até o fim de 2020, a Prefeitura estima que garantirá, no total, 26 mil regularizações fundiárias.

A situação das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), - que na Capital são 135 áreas ocupadas por assentamentos precários - exemplifica um cenário da cidade informal, com imóveis nos quais predomina a ausência de regulamentações. Questionada, a Prefeitura ressaltou que, no momento, não há estimativa da quantidade de imóveis localizados nas Zeis.

Em 2015, quando o Instituto de Planejamento de Fortaleza (Iplanfor) divulgou um relatório sobre as Zeis, a informação era de que essas zonas ocupam 6% da Capital e abrigam uma população de cerca de 450 mil pessoas.

O catador José Alberto Alves sabe bem como esses processos acontecem. "Ninguém tem papel da casa aqui. A situação daqui é compra e venda. Você vende um terreno para um no cartório e pronto. Aqui não existe documento de casa. Não tem esse negócio de dizer que o terreno é meu. É seu porque você marcou na época (da ocupação), botou um cordão e amarrou. É só compra e venda. Não tem saneamento básico. Aqui no inverno alaga tudo", narra.

BATALHA PELO PAPEL DA CASA NO BOM JARDIM

Morador da comunidade Nova Canudos, no bairro Bom Jardim, ele segue na batalha para "ter o papel da casa". Há 17 anos, ele habita, com a família, a casa construída na ocupação do local, há 22 anos. José estima que a comunidade tem, pelo menos, 3 mil casas.

A batalha agora é para que o Plano Integrado de Regularização Fundiária (Pirf), do Bom Jardim, previsto em lei, seja efetivado e garanta, além do papel da casa, também melhorias urbanísticas.

Legenda: José Rodrigues, da comunidade Marrocos, aguarda a regularização
Foto: Foto: Thiago Gadelha

Situação semelhante é vivenciada pelos moradores da comunidade Marrocos, também no Bom Jardim. O comerciante João Batista Carneiro reforça: "os documentos aqui são água e luz somente. Documento de casa não existe. Não existe IPTU. Não, nada aqui, nada". Na área, criada em torno de 19 anos, há, segundo João, cerca de 68 casas regulamentadas, pois foram construídas pela Prefeitura. As demais, que chegam a mais de 100, nunca foram registradas formalmente.

"Moro aqui há uns 20 anos. Foram os próprios moradores que fizeram as aberturas das ruas. Saneamento não funciona. Todos os invernos são assim. Se for inverno forte, alaga. Só as casas que são da Prefeitura que as pessoas têm o papel da casa", reforça o aposentado José Rodrigues dos Santos, 75 anos, morador da comunidade Marrocos.

A arquiteta e urbanista Mariana Quezado explica que, nessa cidade informal, a população não tem registros e há lacunas, muitas vezes, de informações básicas. Além das questões relacionadas à irregularidade fundiária, lembra ela, há também as falhas urbanísticas.Com formas de ocupação da Cidade que podem trazer problemas respiratórios, de incêndio, por serem casas muito pequenas, explica.

Mariana acrescenta que a legislação, muitas vezes, "coloca parâmetros muito altos e faz com que as pessoas não consigam alcançar". A arquiteta reforça que, do ponto de vista do planejamento, a lacuna de informações torna "tudo bastante complicado".

"Como se planeja uma cidade sem informações sobre ela? O geoprocessamento tem crescido e as informações georreferenciadas sobrepostas podem gerar políticas públicas. Temos exemplos de sobreposição como a quantidade de casos de dengue com o mapa do saneamento. Isso identifica as áreas da cidade e as demandas"

O presidente da Comissão de Direito Imobiliário da Ordem dos Advogados do Brasil secção Ceará (OAB-CE), Hebert Reis, reitera a análise e explica que, não só em Fortaleza, mas em grandes cidades, "é muito comum existir um número significativo de imóveis sem a devida regularização". Ele reforça que bairros onde as construções ocorrem através de condomínios, a probabilidade de o imóvel estar regularizado é muito maior.

O QUE PODE SER FEITO? 

Mas, o que pode ser feito para minimizar as lacunas da informalidade? A arquiteta Mariana Quezado enfatiza que "é um investimento grande do ponto de vista de atualização de cadastro nessas áreas. Independentemente do fruto ser a cobrança do IPTU".

Como possibilidade técnica a ser utilizada, ela aponta o mapeamento com levantamento fotogramétrico (uso de tecnologia que reconstrói o espaço tridimensional, a partir de imagens bidimensionais), ferramentas computacionais e dados georreferenciados para analisar questões de morfologia urbana.

Uma das iniciativas que o Plano Diretor Participativo de Fortaleza - legislação que orienta o macro-ordenamento da cidade - estabelece para garantir a regularização fundiária, ambiental, social de centenas de assentamentos é a produção de Planos Integrados de Regularização Fundiária (Pirf).

Esses planos são utilizados para territórios como as Zeis, onde a informalidade predomina. Segundo o Plano Diretor de Fortaleza de 2009 - que está vigente - a Capital tem 45 Zeis tipo 1; 56 Zeis tipo 2 e 34 Zeis tipo 3.

Muitas dessas Zonas existem há mais de 40 anos e carecem de regulamentação para que sejam, definitivamente, implantadas. Questionada se há, por parte da Prefeitura, uma estimativa da quantidade de imóveis localizados nas Zeis, que desde 2018 estão em processo de formulação dos Pirfs, o poder público informou que ainda não há, pois os Pirfs dessas áreas ainda estão sendo feitos. Os planos de 10 Zeis prioritárias são elaborados por professores e estudantes de quatro instituições de ensino superior.

PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

A fase de execução dessas melhorias, explica a Prefeitura, deve ocorrer após a elaboração dos Planos. Somente depois da finalização dessa etapa é que "serão definidas as diretrizes e os procedimentos de regularização fundiária adequados ao território".

Mas, quando questionada sobre os prazos, a Prefeitura acrescenta que a elaboração do Plano "respeita a dinâmica de cada território", e os respectivos Conselhos Gestores "acompanham o andamento das atividades desenvolvidas e as entregas dos produtos acordados". Não há, portanto, informação quanto aos prazos específicos.

A Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor), também realiza processos de regularização, conforme o secretário executivo, Fabiano Magalhães. Dentre as áreas que mais receberam regularização, conforme o poder público, está o Vila do Mar, com 2.500 papéis, e o Conjunto Palmeiras, com cerca de 1.000.

>> Prefeitura atua com cartórios

As demandas pelo "papel da casa" chegam por meio das próprias comunidades, segundo a Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor). "Aí enviamos a primeira equipe. A equipe social. As assistentes sociais vão in loco, fazem o primeiro contato com os familiares, com as pessoas, verificam toda a documentação", explica o secretário executivo Fabiano Magalhães. Em seguida, as comunidades recebem as equipes da engenharia, que fazem as medições topográficas.

Depois, as informações são compiladas, e o setor jurídico entrega aos cartórios de registro territorial que, em parceria com a Prefeitura, formalizam os documentos de regularização. Com isso, a edificação, conforme o secretário, passa a constar no cadastro imobiliário gerenciado pela Sefin e utilizado pela Habitafor.

ZEIS EM PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO

1. Bom Jardim, Poço da Draga e Pici - instituição responsável pela elaboração do Plano: UFC

2. Lagamar, Pirambu e Moura Brasil- instituição responsável pelo Plano: Uece

3. Serviluz, Mucuripe e Praia do Futuro-instituição responsável pelo Plano:Universidade de Fortaleza

4. Dionísio Torres - instituição responsável pelo Plano: IFCE

5. Zeis 1: assentamentos Desordenados em áreas públicas ou particulares e têm, pelo menos, 5 anos de existência. Total em Fortaleza: 45

6. Zeis 2: loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais parcialmente urbanizados. Total em Fortaleza: 56

7. Zeis 3: áreas dotadas de infraestrutura, com concentração de terrenos não edificados. Total em Fortaleza:34

Os destaques das últimas 24h resumidos em até 8 minutos de leitura.