Cachoeiras de saudade

Havia bica de quadra, de casa, de colégio, de calha. Era só escolher e se banhar, se divertir. Era assim...

Escrito por Marcelo Monteiro , marcelo.monteiro@svm.com.Br
Legenda: Os prazeres simples da vida de crianças na periferia, como tomar banho de bica em dia de chuva
Foto: Foto: José Leomar

"Descobrindo que aqui na frente da minha casa tem uma biqueira", disse um amigo num grupo de WhatsApp seguido de uma figurinha feliz.

Pude, então, embeber-me em gotas. Não de chuva. Embora poucas, foram suficientes para me banhar de saudade. Isso porque este garoto "melhorou" um pouco de vida. Saiu da Granja Portugal para a Parquelândia e hoje, vejam só, tem luxos que outrora pareciam improváveis. Redes de academia, supermercados, shoppings, restaurantes e acesso para os quatro cantos da cidade são regalias que passam longe, pelo menos em parte, do antigo cenário suburbano. E não restrito aos aportes físicos, o cotidiano da classe média já assegura pequenos prazeres - andar de bicicleta até a Praia de Iracema para ver o pôr do sol é passeio leve; antes seria insanidade. Ou, pelo menos, sinal de um ótimo preparo físico.

Mesmo assim, com todas essas benesses, há um luxo que a Regional III cerceou. As bicas. E mal dezembro bateu à porta, senti-me num poço de indigência que dinheiro nenhum salva ou muito menos apetece.

Antigamente, morar numa rua em declive parecia privilégio. Das notícias da TV, não vinha o medo de enchente ou desabamento na quadra chuvosa. Vinha, na verdade, a inquietude de ter um teto acima da minha cabeça quando eu só queria o céu. Era assim, com o frivião da teimosia, que o meio da rua se tornava lar. E as bicas alheias compunham a maior das mansões - tão sofisticada que, para não parecer inútil, requeria serventia para cada um de seus cômodos.

Assim, rumava primeiramente à bica da vizinha do lado, que tinha um jato vigoroso, mas uma calçada traiçoeira. Dali, passava à da vizinha da frente, que vinha do segundo andar. Embora a cascata fosse alta, perdia força e fluidez. Olhava ao redor, como se avaliasse os ambientes que mais precisavam de atenção. Chegava a uma terceira, da vizinha da esquina que, por causa dos ocupantes felinos à noite, tinha uma fama duvidosa. Se havia algum indício deles, o problema era rapidamente resolvido - passava à do lado oposto que, junto a um kit de shampoo e sabonete, mantinha um ar de toalete.

Virando a rua, havia mais. Havia bica de quadra de colégio, de calha de vila... Um conjunto variado de quedas d'água. Na riqueza da minha CasaCor imaginária, dividia o espaço com visitantes que aproveitavam aquele ambiente não tão bem planejado. Alguns iam além: faziam das valas tobogãs, quando limpas pela correnteza. Viver numa rua em que o saneamento básico só chegou em 2008 tinha lá suas vantagens. Algumas pessoas, por fazerem uso da criatividade - e somente por isso -, podem tê-las até hoje.

Eu, no meu atual canto, tenho de me contentar com pouco. Há calçadas niveladas e prédios ao redor, porém a chuva não tem a mesma expressão. Talvez fosse interessante pensar em piscinas - tem uma, sazonal, que se forma aqui perto -, mas as cascatas urbanas são exemplos de opulência e liberdade. Iracema ficaria com inveja. Eu também.

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