Blocos carnavalescos unem tradição e novidade em bairros e polos

O caráter histórico e hereditário de grupos antigos, fundados por familiares e amigos, se mescla à novidade de blocos mais recentes, que desfilam nos grandes circuitos; juntos, eles fortalecem o ciclo momino na Capital

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@diariodonordeste.com.br

Enquanto em pleno 2019 a República ainda se enrosca em ameaças à liberdade, Marechal Deodoro da Fonseca, aquele que a proclamou em 1889, circula livre e imponente no bairro Benfica ainda hoje. Aqui em Fortaleza, mesmo, ali pelas bandas da Praça da Gentilândia e do Instituto Federal do Ceará. Quem proporciona o salto na linha do tempo, todo ano, é o Bloco Cachorra Magra, fundado há exatas duas décadas para homenagear a rua batizada com mesmo nome do personagem histórico.

O nome do bloco, para combinar com o da via pública, também é embasado por história, contada com orgulho e empolgação pelo fundador do grupo carnavalesco, o "benfiquense" Fernando César. "A criação foi na irreverência, espontânea, em homenagem à Rua Marechal Deodoro, que era chamada na época pelo apelido de 'Cachorra Magra'."

Os antigos iam se alimentar na Gentilândia e sempre tinha uma cachorrinha bem magra lá, aí identificavam o lugar por esse nome."

O símbolo, inclusive, transpõe o mero batismo - se personifica, erguido junto aos foliões, acompanhando o cortejo inteiro, do início ao fim da rua. Isso porque a "Cachorra" ganha movimento a partir de um carrinho de supermercado, sobre o qual é montada uma carcaça de ferro coberta com retalhos e enfeitada com adereços, tudo para simular a presença do animal que poderia até ter passado despercebido na praça, nos anos 1990, mas ganhou a graça dos moradores e entrou para a história do bairro e da cidade. Além dela, o próprio Marechal se mistura aos brincantes, tal qual os famosos bonecões de Olinda.

Hereditário

"Os moradores, mesmo se estiverem no bloco ou não, ficam aguardando a passagem dele e da cachorra alegórica. As crianças vão dentro do carrinho, embaixo da cachorra, como se fossem os filhotes. É uma alegria!", exclama o criador, ressaltando, ainda, o estilo musical que o bloco fundado pela reunião de familiares e amigos faz questão de manter. "Tem o hino do bloco, que toca muito no cortejo, e aquelas tradicionais marchinhas: 'Mamãe eu quero', 'É dos carecas que elas gostam mais'... Só quem brinca é quem gosta mesmo desse tipo de música, pessoas de 40, 50 anos, que levam filhos e netos", descreve.

A veia hereditária do bloco que surgiu pelas memórias do Fernando menino, levado à folia pelos pais, é defendida por ele como forma de perpetuar a brincadeira. "A sociedade precisa manter essa festa de bairro, principalmente na periferia. Precisamos brincar, porque coisa que não presta é só o que existe!"

Legenda: O ator Diego Salvador, integrante do coletivo As Travestidas, encarna o papel de Iracema no Carnaval do Bode Beat
Foto: FOTO: NATINHO RODRIGUES

Renovação

Se a tradição e as histórias reais guiam o cortejo do veterano no Benfica; são, por outro lado, a quebra de paradigmas e a ficção mitológica que arrastam o novato Iracema Bode Beat na Praia de Iracema. Criado em 2017 em uma reunião de amigos "que tinham negócios ou moravam na PI (Praia de Iracema)", o bloco insere na festa - e une em casamento! - personagens ilustres da cultura cearense: a índia Iracema, do romance de José de Alencar, e o Bode Ioiô. Da união improvável, aliás, nasce o único rebento possível: o próprio Carnaval.

"Ano passado, homenageamos Mário Gomes, que entra na história como um personagem com quem Iracema traiu o Bode - e, por isso, ele tem chifres. Em 2019, temos personagem nova: Tia Simoa, uma negra abolicionista que foi fundamental na Revolta dos Jangadeiros. Quando Dragão do Mar embarcava, ela que ficava em terra e organizava com as mulheres a não embarcação dos negros nos portos cearenses", recobra o diretor-geral do Iracema Bode Beat, Tauí Castro, 32.

Os ressignificados, inclusive, vão além. "Nossa Iracema é uma índia trans que casa com um bode boêmio. Nosso mote todo é exatamente esse, usar nossa cultura para atuar contra a homofobia e uma série de preconceitos que existem no geral, e muito fortes no Ceará. Esse discurso faz com que as pessoas estejam em outra vibração: nunca tivemos nenhum caso de violência dentro do bloco. Não é curtição por curtição", explica Tauí.

Incerteza

A renovação também está na música: em vez das marchinhas, novas roupagens de canções brasileiras e internacionais guiam os foliões. "É um repertório que não está dentro do Carnaval tradicional, mas temos um corpo de batuque que coloca ritmo carnavalesco. Sai tocando em maracatu, frevo..."

O Bode Beat tem uma característica muito forte: é antropofágico. Pega os elementos tradicionais e devolve de outra forma."

Em 2018, segundo Tauí Castro, foram oito saídas oficiais, mas, neste ano, a uma semana da festa, o clima é de indefinição. Isso porque o bloco era apoiado pelo Centro Cultural Dragão do Mar, mas o apoio foi inviabilizado por questões financeiras. "Nosso dia é domingo, às 16h20, mas ainda estamos articulando onde. Lançamos um financiamento coletivo para que o bloco consiga sair: 'Salve o Bode 2019', pela plataforma benfeitoria.com/bodebeat".

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