Apenas 10% das denúncias de assédio em ônibus têm identificação

Em oito meses do Botão Nina - aplicativo que visa coibir a prática de crimes de assédio sexual dentro do transporte coletivo -, ainda é baixo o número de vítimas que formalizaram as queixas criminalmente

Escrito por Redação , metro@svm.com.br
Legenda: Ocorrências de assédio também ocorrem em terminais e paradas
Foto: Foto: Kid Júnior

Ainda que as ferramentas para denunciar casos de assédio sexual no transporte público estejam ao alcance das mãos, relatar o crime ainda é algo complexo para as vítimas. É possível perceber isto por meio do balanço do Botão Nina, ferramenta do aplicativo 'Meu Ônibus' para denúncias de importunações ocorridas nos coletivos de Fortaleza. Já foram notificados 1.536 casos deste tipo de violência entre o dia 6 de março até o início de novembro deste ano. Do total, apenas 157 foram denúncias com identificação do usuário, o que alerta para a necessidade de formalizar a queixa criminalmente. Os dados foram fornecidos pela Secretaria Municipal de Conservação e Serviços Públicos (SCSP), que administra a plataforma lançada no início deste ano.

Foi na volta para casa que a universitária Bruna Nepomuceno, 20, teve sua memória marcada pela atitude criminosa de um passageiro. "Eu estava sentada sozinha no banco e acordei quando senti uma mão na parte interna da minha perna. Aí quando olhei tinha um homem sentado do meu lado passando a mão em mim", lembra. Desde então, a jovem combina caronas com o pai para evitar como pode o uso de transporte público. Neste episódio, como em outros relatados, Bruna não conseguiu esboçar reação e desceu do coletivo que já estava próximo de casa.

"No início deste ano, os episódios de assédio se tornaram muito frequentes, inclusive em um deles partiu de um cobrador de ônibus", destaca. Ela não conhecia a ferramenta inclusa no aplicativo Meu Ônibus, que também informa os horários das linhas, mas aprova a iniciativa como forma de coibir novos casos.

As mulheres são as principais vítimas e correspondem a 78% dos registros que foram feitos por aquelas que sofreram ou presenciaram um episódio de assédio sexual, como indica o balanço do Botão Nina. A maioria dos casos (87%), aconteceu dentro dos ônibus, mas também há registros nos terminais (5%) e nas paradas de ônibus (8%).

Mesmo com o recurso virtual, que solicita as imagens das câmeras de segurança para garantir a efetividade da denúncia, ainda é necessário comparecer às delegacias.

Mariana Gomes, arquiteta e urbanista da Prefeitura de Fortaleza, destaca este aspecto. "Para transformar em denúncia você precisa preencher com dados pessoais e dar mais detalhes". Ela reforça que a ferramenta serve para depois do assédio e que são necessárias políticas públicas para evitar os casos como a requalificação de pontos de ônibus e treinamento com os motoristas e trocadores.

Ferramenta

Do Estado vizinho, em Pernambuco, surgiu uma iniciativa para apoiar as vítimas de importunação sexual por meio do trabalho de Simony César, fundadora do Botão Nina. Filha de trocadora de ônibus, assim como usuária do transporte público, ela conhece a realidade em que os assédios são frequentes e viu no seu estágio, em uma empresa de transportes, a oportunidade para encontrar a solução.

"No Brasil, o assédio em espaços públicos só foi considerado crime em setembro do ano passado. Até então, não tinha nenhum dado com base em casos reais de assédio, só estimativas. A Nina traz pela primeira vez esses dados com base em casos reais", destaca.

Entre as ferramentas, o Botão Nina possibilita mapear as zonas de risco e os horários em que os crimes foram registrados. Dessa maneira, as estratégias de combate ao assédio podem ter maior precisão. "O grande objetivo foi criar um mecanismo de forma fácil para que as mulheres reportassem e, para que esse mesmo mecanismo, se tornasse padrão em qualquer aplicativo de mobilidade. Começou no 'Meu Ônibus' e agora a gente está avançando para ser inserido em outros aplicativos", detalha a criadora.

Para dar nome à ferramenta, ela conta que tem na cantora norte-americana Nina Simone um símbolo de liberdade. "Eu estava assistindo um documentário chamado 'What Happened, Miss Simone?' em que um jornalista pergunta o que ela entende por liberdade. Naquela época, ela lutava pelos direitos dos afrodescentes americanos e, em seguida responde que liberdade é não ter medo", frisa. Ela diz que vê, no Botão, uma forma de "incentivar às mulheres a fazer a denúncia e a entender que não acaba ali na Nina", conclui Simony.

"Eu tinha muito medo, e não falava, até que um dia aconteceu de ele realmente colocar a mão dentro da minha roupa. Eu não tive reação nenhuma". O relato da técnica administrativa Iana Queiroz, 23, é de quem conheceu cedo uma realidade que ainda exige muito esforço para ser transformado. Aos 13 anos de idade, quando começou a andar de ônibus sozinha, notou que um mesmo homem, diariamente, tentava se aproximar dela ainda na fila. No episódio, difícil de esquecer, ela só contou sobre o transtorno para a família porque seu irmão a viu chorando.

As barreiras para denunciar um caso de assédio, além do trauma, são formadas por questões culturais que diminuem a gravidade do crime, como analisa Iana. "Eu acho que a gente tem muito medo e vivemos numa sociedade que nos coloca (mulheres) como objeto, e aí não temos reação. A gente sofre esse tipo de violência e as pessoas normalizam muito isso 'ah porque é homem, porque é normal, é instinto?'", reflete. Hoje, ela diz que vê "a importância das denúncias" como uma forma de cobrar do Poder Público ações que punam e evitem novos casos.

Punição

Danielle Mendonça, titular da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), reforça a necessidade de formalizar a denúncia por meio de um boletim de ocorrência. "É interessante que elas, apesar do estado emocional, procurem reunir dados acerca daquele coletivo em que ela estava se deslocando, como por exemplo, o número da linha, porque isso vai facilitar bastante a investigação", esclarece.

Ela explica que os crimes mais frequentes no transporte coletivo são os assédios sexuais, em que há toques libidinosos, mas que também ocorrem estupros. "O estupro não é apenas a conjunção carnal, é qualquer ato libidinoso praticado contra a vítima em que acontece uma grave ameaça ou uma violência física", destaca. Danielle, explica que a punição para assédio sexual é de um até cinco anos, já quando se trata de estupro o criminoso leva de três a oito anos.

Ainda é preciso criar um ambiente ideal para que as vítimas possam denunciar os crimes, como analisa Danielle. "Nós estimulamos a denúncia e sempre frisamos para as vítimas que a culpa da violência é exclusivamente do agressor. Que ela, de forma alguma, deve se sentir culpabilizada pela violência que sofreu", finaliza a delegada.

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