Ambulatório para pessoas trans abre atendimento em Messejana

Há, pelo menos, três anos, homens e mulheres trans cobram acesso ao serviço de saúde adequado no Ceará. O ambulatório Sertrans foi reaberto na Capital e já recebeu pessoas de Sobral, Redenção e Monsenhor Tabosa

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br

A espera é longa e faz com que no processo transexualizador, além de outras vulnerabilidades, homens e mulheres trans sofram também com a falta de atendimento especializado no campo da saúde. No Ceará, a demanda desta população é antiga e há, pelo menos, três anos, travestis e transexuais atuam e cobram de forma sistemática acesso à assistência. Em novembro deste ano, o Serviço de Referência Transdiciplinar para Transgêneros (Sertrans), em Fortaleza, que funciona no Hospital Mental Professor Frota Pinto, em Messejana, reabriu o ambulatório para novos pacientes. Uma possibilidade para começar a reduzir a demanda reprimida.

A busca por atendimento adequado é incessante, explica o presidente da Associação Transmasculina do Ceará (ATRANSCE), Kaio Lemos. Segundo ele - homem trans que no processo de transição precisou recorrer à Justiça para assegurar o direito de acesso aos serviços apropriados de saúde -, a demanda pela abertura do ambulatório é histórica.

Em 2017, a Secretaria da Saúde do Estado (Sesa), durante audiência pública, firmou o compromisso de abrir o ambulatório. Mas chegou o primeiro prazo (setembro de 2017) e nada foi feito. Outros dois prazos foram pactuados - outubro de 2018 e maio de 2019 - e descumpridos. Em novembro deste ano, finalmente, o atendimento a novos pacientes começou a ser realizado.

Entre o início de janeiro e o dia 15 de dezembro, o ambulatório que realiza acolhimento às quintas-feiras, recebeu dez novos pacientes oriundos de Fortaleza, Sobral, Redenção e Monsenhor Tabosa.

Atividades

Segundo a integrante da coordenação do Sertrans, a assistente social Maria Delfino da Silva, o ambulatório funciona desde 2016, mas atendia apenas pacientes vindos do próprio hospital de saúde mental, totalizando uma média de 40 pessoas. Agora, o Sertrans acolhe pessoas encaminhadas pelos postos de saúde.

A novidade, explica ela, é essa abertura para novos pacientes. "Nós já vínhamos fazendo o atendimento no ambulatório desde junho de 2016 e a partir desse fim de ano, de 2019, recebemos da Sesa, por escrito a abertura de novas vagas para acolhimento", diz.

Maria reconhece que há uma grande demanda por atendimento em todo o Estado e a projeção é que a equipe chegue a atender entre 100 e 150 pessoas por mês. Atualmente, segundo ela, o Sertrans conta com assistente social (1), psiquiatras (3), psicólogos (3), enfermeira (1) e endocrinologista (1). Após o acolhimento, o paciente realiza as demais consultas a depender das demandas individuais.

Questionada sobre a ausência de ginecologista e urologista - profissionais necessários no acompanhamento do processo transexualizador - na equipe do Sertrans, a assistente social diz que "isso está sendo ajustado" e, hoje, os pacientes que precisam são encaminhados para o atendimento especializado na Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac). "Estamos em trâmite para pactuar esses novos encaminhamentos. Tem uma parceria que precisa ser pactuada formalmente junto à Meac. A intenção é que a gente consiga essa pactuação para dar vazão aos atendimentos que não temos", acrescenta Maria.

O representante da ATRANSCE, Kaio Lemos, ressalta o processo histórico de busca por atendimento e conta que, antes, os pacientes eram atendidos no Ambulatório de Transtornos da Sexualidade Humana (Atash) também em Messejana. Por dois anos, ele foi usuário desse serviço. No entanto, esse atendimento era cercado de problemas. Um deles, na avaliação de Kaio, é que o ambulatório anterior tinha atendimento precário e carregava o peso do estigma de estar localizado em um hospital mental.

Essa localização, que é a mesma do Sertrans, não é bem acolhida por integrantes do movimento trans. Inclusive na opinião de Kaio, vai de encontro à ação da Organização Mundial de Saúde (OMS) que oficializou, esse ano, a retirada da classificação da transexualidade como transtorno mental da 11º versão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde (CID 11).

"Estamos muito atrasados em relação à questão do território. Ao colocar pessoas trans dentro de um hospital mental ainda vivenciamos o quadro de patologia. Estamos muito atrasados em relação ao preparo da rede hospitalar. E não é só em relação ao processo transexualizador e a transexualidade é na vivência da realidade, de informações básicas", ressalta.

Demanda

Durante o processo de reivindicação de abertura do novo ambulatório, conforme Kaio, nas reuniões e audiências foi solicitado que o Sertrans não funcionasse no hospital de saúde mental. Outras unidades foram cogitadas. Porém, não se chegou a nenhum consenso. O que ficou pactuado, lembra ele, é que os serviços do ambulatório começariam em Messejana e depois migrariam para as policlínicas. Inclusive, diz ele, para garantir a descentralização dos atendimentos.

Além disso, Kaio reforça que, em outras cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Paraíba, a garantia de atendimento especializado para pessoas trans geralmente se dá nos hospitais universitários que são polos de pesquisa e têm inúmeros profissionais em formação. No Ceará, essa possibilidade foi cogitada, mas não se concretizou.

No ambulatório anterior, relata Kaio, "tínhamos atendimento com psiquiatra e psicólogo e uma ginecologista para ambas demandas". Para ele, o ideal é que o atendimento multiprofissional inclua psiquiatria, psicologia, endocrinologia, ginecologia, urologia e fonoaudiologia. Quando o antigo ambulatório deixou de atender a novos pacientes, o efeito foi que muitas pessoas trans, diz Kaio, "foram parar na ilegalidade", comprando hormônios, por exemplo, e aplicando-os sozinhos, sem orientação profissional.

Kaio, que ingressou na Justiça para garantir os atendimentos adequados para si, hoje tem consulta paga pelo Estado com endocrinologista e ginecologista. Ele acredita que com a nova disposição do serviço deverá migrar os atendimentos para o Sertrans.

Para que isso aconteça, diz ele, é necessário ser encaminhado por uma unidade básica de saúde. Para isso, é preciso garantir que os postos de saúde do interior estejam o conectados à rede de regulação de vagas no Sertrans. "E nem estamos falando no procedimento cirúrgico. Estamos falando de outros atendimentos. Só para termos dimensão do quanto é difícil".

A defensora pública do Núcleo de Direitos Humanos e ações coletivas da Defensoria Pública do Ceará, Sandra Moura, afirma que o órgão tem acompanhado essa situação e cobrado a reabertura do ambulatório. "Nós intermediamos junto ao secretário de Saúde e, inúmeras vezes, disseram que iam reabrir e não cumpriram. Essa demora é problemática porque o ambulatório é a porta de entrada. Na ausência dele, as demandas vão se prolongando no Judiciário e acontecem inclusive casos de automutilação", destaca a defensora.

Questionada sobre a demanda por retirada do Sertrans do hospital mental e a descentralização do atendimento, a integrante da coordenação do ambulatório, Maria Delfino da Silva, explica que "há um diálogo para melhorar a qualidade no atendimento e estruturar melhor esse serviço". Ela reforça que a descentralização "é importantíssima". Mas, por enquanto, não há prazo para ocorrer.

 

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