Alcoolismo gera 22% das internações de dependentes em Hospital Mental

A dependência do álcool é uma doença crônica que ainda enfrenta gargalos culturais e sociais para ser tratada. No Ceará, em 2019, o Hospital de Saúde mental internou 180 pacientes em decorrência do uso abusivo da substância

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
Legenda: Segundo especialistas, os 15 primeiros dias de abstinência são decisivos para o tratamento
Foto: Foto: KID JUNIOR

Um problema grave e ainda difícil de ser enfrentado. Desde 1967, o alcoolismo é considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) uma doença crônica, com aspectos comportamentais. Mas, o fato de o álcool ser uma droga lícita, atrelado a fatores culturais e sociais, muitas vezes, faz com que o tratamento ao uso abusivo da substância sofra interferência. No Ceará, no Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto, em Messejana, - única emergência psiquiátrica pública do Estado - , 180 dos 817 pacientes foram internados em decorrência do alcoolismo em 2019. Isto equivale a 22% das internações de dependentes químicos na unidade e a um aumento de 73% em relação a este tipo de internação, no ano anterior, quando 104 pacientes deram entrada.

O total de 2018 representa 14% dos dependentes químicos atendidos na unidade naquele ano. Para quem convive com a dependência, manter-se afastado do álcool é uma condição permanentemente desafiadora.

O comerciante Roberto (optamos por usar nome fictício para preservar a identidade da fonte), morador do bairro Parangaba passou, pelo menos, 19 anos, dos seus 65 anos, sob efeito direto do álcool. Roberto é dependente químico e conta que o consumo teve início ainda aos 12 anos. "Eu tomava umas doses. Depois, dos 12 aos 17 anos, eu costumava dizer que bebia socialmente. Bebia muita caipirinha".

Processos

O uso abusivo da substância avançou e aos 17, conta ele, começou a despertar a compulsão. "Queria beber mais e mais", afirma. No intervalo até os 28 anos, Roberto abandonou empregos pois não conseguia se manter sóbrio. "Fechei um escritório que eu tinha e fui embora para São Paulo trabalhar no comércio".

Na nova cidade, Roberto bebia diariamente. A dependência chegou a um grau tão severo que ele se desfez de uma casa para pagar os prejuízos do consumo do álcool. Aos 29 anos, foi morar sob um viaduto. Nessa etapa, a irmã o resgatou e o trouxe para Fortaleza. Conforme Roberto, nesse tempo, os danos eram tantos que o seu casamento teve fim, e a ex-esposa mudou de país com seu filho. Foram morar nos Estados Unidos. Um vínculo quebrado quando o filho ainda era criança. Impactos do alcoolismo que só foram dimensionados anos após as sucessivas perdas. Quando retornou a Fortaleza, Roberto foi acolhido em um grupo de Alcoólicos Anônimos (AA).

"Na época que eu fui resgatado, eu achava que ia morrer em seis meses. Não me alimentava direito, estava com o corpo todo inchado. Quando parei de beber, eu entrei em estado muito crítico. Comecei a ter delírios, ouvir vozes. Passei a me tremer. Não conseguia segurar um copo na mão. Eu estava em um estado de loucura", relata.

Vieram os primeiros 15 dias de abstinência. Depois, a ausência de contato com o álcool se prolongou. Dura até hoje. Roberto retomou o equilíbrio. Não de modo fácil. Mas amparado em ajudas. O contato com o filho e a ex-esposa foi recuperado. Voltou a ter uma atividade laboral. Aos 65 anos, Roberto auxilia outros dependentes nos 214 grupos de Alcoólicos Anônimos espalhados da Capital.

Tratamento

Na época em que buscou auxílio, conta Roberto nem sequer existiam os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), unidades de atendimento da rede de saúde mental. "Eu não tinha consciência. Eu achava que era natural beber daquela forma. Nesse tempo não tinha Caps. Se você fosse buscar ajuda, era mandado para um hospital tido como 'hospital de louco'. Hoje, vejo que é fundamental buscar ajuda médica. Há importância no depoimento, na troca que fazemos no AA, mas temos que cuidar da saúde e espírito", opina.

Na unidade de desintoxicação do Hospital Mental, o psiquiatra Carlos Celso informa que o tratamento de pacientes com dependência química de álcool é individualizado. Ele ressalta que esse atendimento envolve médicos clínicos porque o uso abusivo de álcool causa uma série de males ao organismo. "A pessoa que usa álcool de forma abusiva e contínua por muito tempo vai ter uma série de danos como doenças hepáticas, desnutrição, depressão de vitaminas específicas. E pode ter diversas outras complicações clínicas que devem ser abordadas com cuidado".

Além disso, Carlos alerta que "uma pessoa que usa grande quantidade de álcool, geralmente, por muito tempo, e para de usar de uma vez, quando não abordada corretamente, pode evoluir para um quadro grave. Tem que dar o suporte médico. Você estabiliza o paciente. Os 15 primeiros dias de parada são decisivos".

Nessa etapa do tratamento, relata o profissional, o objetivo é a abstinência e isto requer a participação multiprofissional, pois ainda que exista a intervenção farmacológica - como a aplicação de medicamentos que reduzem a vontade do uso - o momento é de intervenção comportamental. "Vão ser abordadas as motivações para uso do álcool, qual é o padrão, quais são os gatilhos, quais as situações que ele perde o controle", reforça.

Cultura

O psiquiatra e professor do curso de Medicina da UFC, Fábio Gomes enfatiza que o alcoolismo é um problema sério de saúde pública que afeta 5% da população mundial. "Temos uma sociedade imersa no álcool que tem 'bebemoração'. Tudo isso é uma característica da cultura ocidental", relata. Além disso, analisa, por ser uma droga socialmente aceita, o consumo de álcool é cultural. Isso no dia a dia, avalia, pode ser dimensionado pela quantidade de eventos financiados pela indústria do álcool no país.

Fábio também ressalta que as bebidas destiladas como cachaça, uísque e vodca tendem a ter índices alcoólicos superiores ao da cerveja, por exemplo. Mas, esta é uma bebida cujo consumo é geralmente feito em grande quantidade. "Muitas vezes, é necessário internar a pessoa porque ela não tem controle sobre o consumo. Mas, em vários casos, a forma de controlar é evitar qualquer contato. Se a pessoa passa 24 horas sem beber, ótimo. Vamos tentar passar mais 40 horas. Até aprender a viver sem o álcool", afirma.

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