Acesso a educação e saúde públicas são negações diárias a autistas

Pelo menos quatro leis locais e nacionais, uma delas sancionada neste mês, dispõem sobre direitos a pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), mas famílias apontam dificuldades para conseguir escola e terapias no Ceará

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Laís é acompanhada pela mãe na escola municipal: nunca conseguiram auxiliar de sala
Foto: FOTO: NATINHO RODRIGUES

"Tá na lei." A frase, que deveria ser garantia incontestável de direitos, vem sempre acompanhada de um "mas" para pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). O acesso prioritário delas a serviços públicos e privados, com maior foco em educação e saúde, está em mais uma norma, desde 8 de janeiro: a Lei nº 13.977, denominada "Romeo Mion", que determina a emissão de uma carteira de identificação para quem tem TEA. Mas garantir a autistas, na prática, direitos fundamentais como tratamento de saúde e permanência em creches e escolas ainda é meta não alcançada no Ceará.

Na rede municipal de ensino da Capital, estão matriculados 2.351 estudantes com autismo, distribuídos em 417 escolas, conforme a Secretaria da Educação de Fortaleza (SME). O total de profissionais de apoio escolar, porém, é sete vezes menor: são 332 para acompanhar pessoas com TEA e outras deficiências. A Pasta garante que "todos os alunos são devidamente assistidos, de acordo com as necessidades específicas, assegurando os suportes e recursos de acessibilidade física e pedagógica".

A realidade vivenciada por Laís, de 4 anos, é outra. O "despreparo" dos profissionais é uma constante desde o primeiro contato com a escola, em uma instituição privada, e a ausência foi reforçada na rede pública, procurada pela mãe, a maquinista Gabriela Rodrigues, 32, no início de 2019. "Perdi o prazo de matrícula para pessoas com deficiência, então deixei a documentação para fila de espera. Ia lá toda semana, e não surgia vaga", relembra.

A vaga apareceu um semestre depois - e representou o início de uma nova saga. "Minha filha já tinha perdido meio ano. A escola solicitou acompanhante, mas ele nunca chegou e tive que ficar na sala de aula com ela. E eu preciso trabalhar. Trabalho à noite pra poder ficar acompanhando ela durante a manhã. Mudei ela de escola, agora, e não tive dificuldade alguma na matrícula, mas já tô ciente de que dia 28 as aulas começam e vou ter que ficar lá, porque ela não pode ficar sozinha", lamenta Gabriela.

Acesso

De acordo com a pedagoga Daniela Botelho, presidente da Fortaleza Azul, associação de quase 300 famílias de autistas, a deficiência assistencial da rede pública é ainda mais grave. "Nas escolas particulares, somos negadas todo dia. Nas públicas, não podem negar, mas a criança ou adolescente às vezes não tem acompanhante, demora um ano pra aparecer. E não é feito o plano individual de estudo. Cada autista é único: tem o que vai acompanhar a primeira série, e outro não. Mas todos têm que conviver com os pares cronológicos", salienta.

Lis Botelho, 12, filha de Daniela, está fora da escola regular: a mãe aderiu ao ensino domiciliar, após oito negativas de matrículas e dois anos frustrantes em instituições privadas. "Ela ia pra escola e passava o dia passeando. Visitei a realidade das escolas públicas, mas entrei em pânico. Muitas famílias cansaram, desistiram de lutar por essa inclusão que não existe. Mas muitas outras não têm a menor condição financeira, por isso a nossa luta continua", frisa.

A Lei Estadual nº 16.094/2016 determina que "o gestor escolar, ou autoridade competente, que recusar a matrícula de aluno com TEA será punido com multa de três a 20 salários-mínimos". Já o artigo 28 da Lei Brasileira de Inclusão - LBI (nº 13.146/15) obriga o poder público a ofertar profissionais de apoio escolar a pessoas com deficiência que solicitarem, enquanto um Projeto de Lei do Senado n° 278 sugere alteração da LBI, buscando definir que não um, mas três profissionais atendam as demandas do estudante com deficiência: o atendente pessoal, o acompanhante e o profissional de apoio escolar. O PL segue em tramitação desde 2016.

Entre 2017 e 2019, quase 90 famílias ingressaram com ações no Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria Pública do Estado em busca de direitos relacionados à educação. De acordo com a defensora Mariana Lobo, supervisora do NDHAC, cerca de 40% dos casos que chegaram ao órgão no ano passado eram de crianças com TEA. "O primeiro desafio é o da vaga e do acompanhamento, o segundo é garantir atendimento psicossocial e da rede de proteção. Apesar de Fortaleza ter grande cobertura de profissionais de apoio, ainda existe uma deficiência muito grande", explica a defensora.

Terapias

As negações atravessam ainda o âmbito da saúde. Laís, por exemplo, tem plano privado, mas segue sem a quantidade suficiente de terapias semanais, que incluem médico, fisioterapeuta, psicoterapeuta, terapeuta ocupacional e fonoaudiólogo. Na tentativa de complementar com o serviço público, a mãe se frustrou. "Procurei o posto de saúde pra tentar acrescentar terapias, não tenho condições de pagar extras. Desde outubro não tem vaga pra consulta. Consegui uma de emergência pra pegar um laudo: foram liberadas três sessões de 30 minutos, uma por semana. Se a Laís não tivesse um plano, seria altamente insuficiente. Entendo que é uma tentativa de atender o maior número de crianças, mas não adianta quantidade, é qualidade", pontua Gabriela.

A presidente da Fortaleza Azul reforça: "só quem tem atendimento de qualidade é quem tem condição financeira muito boa". "As terapias são contínuas, semanais, custam cerca de R$ 5 mil por mês. No plano de saúde, só fonoaudióloga, por exemplo, tem que ser duas vezes por semana, cada sessão 50 minutos. Senão, não funciona. E na rede pública, a terapia toda é uma vez por semana, 30 minutos", relata Daniela, cuja associação garantiu na Justiça que um plano privado da Capital credenciasse duas clínicas especializadas em autismo. Quem não é cliente continua a depender do Sistema Único de Saúde (SUS).

Segundo Aline Gouveia, coordenadora das Regionais de Saúde de Fortaleza, cerca de 2 mil crianças com transtorno do espectro autista recebem atendimento integrado na Capital, no Instituto da Primeira Infância (Iprede), Núcleo de Atenção Médica Integrada (Nami), Núcleo de Tratamento e Estimulação Precoce (Nutep) e outras sete prestadoras de serviço. Outra entidade está em processo de análise documental para ser credenciada, mas o nome e a quantidade de pessoas com autismo a serem beneficiadas pela possível expansão não foram informados pela coordenadora.

Sobre as denúncias de duração e disponibilidade deficiente de sessões de tratamento, Aline nega insuficiência e afirma que "cada sessão de terapia dura em torno de 50 minutos, mas a quantidade de sessões depende do grau de acometimento da criança" pelo transtorno. Em relação à demora para marcação de consultas com especialistas como neurologista, a coordenadora reconhece que "é uma especialidade escassa", mas que tem sido expandida para clínicas e policlínicas da cidade.

O promotor de Justiça Enéas Romero, coordenador do Centro de Apoio Operacional da Cidadania (Caocidadania), do Ministério Público do Ceará (MPCE), aponta que o aumento do número de pessoas com autismo não foi acompanhado pelas redes de assistência. "Muita gente entra na Justiça contra planos de saúde, todos têm ações. Na saúde pública, a família fica na fila e não consegue atendimento. Isso traz sofrimento e prejuízos ao desenvolvimento da criança. É urgente a ampliação", alerta. No mundo, uma em cada 160 crianças tem TEA, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, não há dados oficiais.

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Ensino médio

Em 2019, de acordo com a Secretaria da Educação do Ceará, 199 alunos autistas foram matriculados no ensino médio, em 36 escolas de Fortaleza e 91 do interior. A Seduc garante que "170 cuidadores atendem os alunos" e que há "oferta de Atendimento Educacional Especializado (AEE), no contraturno, consideradas as necessidades específicas de cada um".

Avanços legais

Em 2012, foi sancionada a Lei nº 12.764, instituindo a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, que dispõe sobre todos os âmbitos que devem garantir atendimento a quem tem TEA. Em 2019, entrou em vigor a Lei nº 13.861, que obriga o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a inserir no Censo 2020 perguntas sobre o autismo. Já neste ano, em janeiro, a Lei nº 13.977 criou a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea).

 

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