A luta e o luto das mães da Chacina da Grande Messejana

No Dia das Mães, histórias de mulheres da periferia que se tornaram ativistas contra a violência urbana após perderem seus filhos

Escrito por Karine Zaranza - Repórter | Fabiane de Paula - Repórter fotográfico ,

Geralmente são elas que embalam em sonhos, mas que também empunham faixas, cartazes e bradam por Justiça. Os crimes transformam mães em ativistas contra a violência policial em todo o Brasil. Em São Paulo, as Mães de Maio até hoje relembram a chacina que ocorreu em 2006. Quem não se lembra das mães da Chacina do Vigário geral e da Candelária, ambas no Rio de Janeiro? No Ceará, a história é mais recente. As Mães da Chacina da Grande Messejana vão às ruas, cobram do Estado e do Judiciário um encaminhamento sobre as 11 mortes, ocorridas em 12 de novembro, supostamente por policiais militares.

Se agora elas se unem por Justiça para os seus, o que mostra a história, é que esses movimentos se ampliam com o objetivo de transformação social. Basta conversar com uma delas para perceber que o discurso se amplia. “No ano em que meu filho foi morto, em junho, ele dizia que ia servir o exército. Acontece que a Polícia chegou primeiro e destruiu o sonho dele. Por ser filho de pobre, não merecia viver? Isso não é justo. Quero justiça para que outros jovens inocentes não morram como o meu filho”, justifica Edna Carla Sousa, mãe de Alef, 17 anos, uma das vítimas da Chacina.

De acordo com Leonardo Sá, sociólogo e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará (UFC), o protagonismo das mulheres, das mães, tende a ser decisivo, pois elas possuem um lugar central na construção da vida coletiva e na resolução dos problemas. 

A dor se amplia para os campos dos Direitos Humanos. Foi assim desde os anos 1990, quando começam a se juntar a outras vítimas da violência urbana com o intuito de fortalecer o movimento por uma “cultura de paz”, mas com reivindicações por uma política pública para o combate à violência

O que faz com elas se organizem coletivamente é o luto e o entendimento que é preciso resistir. “A maioria das mulheres sofre sozinha suas perdas afetivas. Sentem-se isoladas, impotentes e frustradas. Apenas em alguns casos se organizam para lutar juntas e assim superar coletivamente seus lutos. Vivenciar coletivamente ajuda a sair do sentimento de isolamento. Traz o problema para o âmbito da cidadania. Aprende-se na luta coletiva que o problema possui raízes comuns”. 

O fim da dor nem sempre vem com a Justiça, como explica Leonardo. “O Direito pode apenas mediar o sentimento de injustiça. Esse sentimento pode ser mitigado, mas não desaparece”, completa.

A descoberta da fortaleza

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Edna Carla Sousa

A voz firme e o discurso combativo de Edna Carla Sousa Cavalcante, 45 anos, se tornaram mais que representações individuais. São coletivas. Quando ela exige Justiça e chora por seu filho Alef Sousa Cavalcante, assassinado, em 2015, aos 17 anos, a mãe brada também pelas famílias dos outros dez mortos na Chacina de Messejana. O luto vivido em sua intimidade por três meses, quando se recuperava da perda, teve que virar luta dela e de outras mães. Edna conta que não foi fácil, mas hoje, um ano e meio depois, já está forte para exigir o fim que considera justo.

“A Suderly (mãe do Jardel) e a Catarina (mãe do Pedro) já tinham começado esse movimento. Mas eu não tinha força. Eu só chorava. Estava desesperada. O momento que eu vi que tinha que me levantar foi quando eu senti a falta do “eu te amo” do meu filho dentro da minha casa, quando senti falta do abraço do meu filho dentro de casa. Eu vi que não podia cruzar os meus braços. Eu tinha que me juntar às outras mães pra ter força de lutar. Eu posso lutar pela Justiça, pelo meu filho. O que queremos é a condenação e exoneração dos cargos dos culpados. Eu não posso financiar a bala que matou o meu filho”, exige ela.

Muita coisa mudou desde aquela madrugada do dia 12 de novembro de 2015. Edna arrumou as coisas e saiu do bairro São Cristóvão. Não aguentou ver a quadra de skate que Alef tanto gostava. “Precisava fugir dessas lembranças, fugir da dor, da loucura que se tornou minha vida depois daquilo”, confessa. Na casa nova, com marido e a filha, ela mantém as lembranças antigas do menino que sonhava servir o exército. “A lembrança mais forte é de quando eu me acordava, às 4h, e era o quarto do meu filho que eu ia primeiro. Eu beijava a testa dele. Mais forte é que agora no Dia das Mães eu não vou ter o abraço do meu filho”.

Forte, Edna aceita o título de heroína. Abre um livro antigo e lê o poema que Alef recitou, no Dia das Mães em 2004, em que o filho dizia que ela era esse exemplo de coragem. “Eu me sinto uma heroína. Quem fez essa heroína não foi o tempo. Quem me fez essa heroína foi meu filho. Através da morte do meu filho eu não sabia que tinha a força dentro de mim pra lutar por Justiça. Mudou porque eu sei que nossa luta hoje não traz meu filho de volta, mas serve para evitar que outros jovens sejam assassinados cruelmente e friamente como meu filho foi”.

Em meio a um discurso de dor e revolta, o único momento que a voz desta mãe se amiúda é quando reconhece que também descobriu a solidariedade de quem nem conhecia. Ela se diz grata pelo apoio de vários órgãos e entidades. Viu uma multidão ir às ruas e fortalecer o grito de inocência das vítimas, ao mesmo tempo que amparava as famílias nessa jornada de luta.

A dor dos sobreviventes

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Silvia Helena de Lima

Um milagre. A dona de casa Silvia Helena Pereira de Lima, 50 anos, define assim poder ter o filho de 22 anos, sobrevivente da Chacina da Grande Messejana, em casa. Mesmo após ser atingido por 10 tiros, inclusive um de raspão na cabeça, o jovem que prefere não ter sua identidade revelada, está bem. Sofre sequelas graves. Perdeu o movimento de um braço e de uma perna, teve fígado, pulmão e rim atingidos. Não joga mais bola com os amigos nem reside na casa em que nasceu e cresceu. Ele sobreviveu, mas vive pela metade.

A mãe, que só agora teve coragem de mostrar o rosto, diz que a dor de quem sobrevive não é menor. Ela foi a primeira a ver os jovens mortos em frente a sua casa. Viu o filho agonizar e chamar por ela. Naquela madrugada, a mãe paralisou. “Não tive coragem de chegar perto dele. Ele chamava por mim, mas eu não fui”, relembra. Silvia confessa que o primeiro golpe daquela madrugada foi ver o sobrinho Jardel morto. “Eu vi e disse: “Meu Deus, é o meu sobrinho, o Jardel. Como eu vou avisar minha irmã? Eu não liguei pra ela. Eu liguei pra outra irmã. Desliguei o celular. Não tive coragem”, reconhece ela que aponta o sobrinho como um presente para toda a família. 

Depois, com o filho à beira da morte, ela o entregou a Deus. “Os médicos não deram esperança. Eu fiz o que outras mães não puderam fazer. Eu entreguei a vida do meu filho a Deus. Mas tu sabe o coração da tua serva. Eu não posso pedir pelos demais, o que posso pedir é que a alma deles o Senhor resgate. Mas meu filho, a alma é Tua, mas você sabe o meu coração”, diz Silvia, que afirma não ter a força das outras mães. O jovem passou 45 dias internado, cerca de 15 em coma. Enquanto isso, resistiu bravamente. Mas, com o jovem em casa, caiu doente. 

Ela diz que não conseguiria viver sem o filho, declaradamente seu favorito. Mas, perdeu um pouco dele. Com medo, mandou ele e a irmã para o Interior. Fica na casa que é uma eterna lembrança da noite mais traumática de sua vida. “Eu posso enfrentar. Mas eles eu não vou colocar em perigo. Eu tenho medo. Mas eu não deixo me levar pelo medo. Eu não deixo de andar, de fazer minhas coisas. Se eu vejo o carro do Ronda passando, eu tenho medo”, diz.

A coragem que a fez mostrar o rosto e falar suas dores foi inspiração das outras mães. Foi também pelo desejo de enfrentar seus fantasmas e de garantir um consolo a todos os que perderam seus entes. “O que mudou é que eu quero enfrentar o medo. Eu não tenho o que esconder. Eles tiveram, esconderam a cara, culparam os meninos chamando eles de marginais. O que eu mais desejo é Justiça. Eu sei que não vai aplacar a dor dessas crianças e pais de família, mas vai servir de consolo”, defende. 

Pela memória do filho

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Maria Suderly Lima

O primeiro lamento de Maria Suderly Pereira de Lima, 52 anos, é de não ter se despedido do filho Jardel Lima dos Santos no dia 11 de novembro. Quando saiu de casa, pela manhã, o viu ainda dormindo. Ao retornar da loja, por volta das 20h, soube que o adolescente de 17 anos tinha ido à casa da namorada. O reencontro entre mãe e filho só aconteceu, na madrugada do dia 12, com o primogênito já sem vida, na calçada da casa de sua irmã Lúcia. “A única coisa que eu pude fazer pelo meu filho foi passar a noite com ele até seu corpo ser recolhido, no o outro dia, por volta de 5h30”, relembra.

A saudade muitas vezes embarga a voz dessa mulher-coragem que não se deixa calar. Destemida, chora, exibe sem pudor a ausência do filho amado, mas nem por isso perde a fortaleza. Assim como Edna, com quem divide a luta pela Justiça às vítimas da chacina de Messejana, ela clama para que os culpados sejam punidos. Diz ter fé, mas promete recorrer às instâncias internacionais, se no Brasil, a Justiça não for feita. “Eu não pude dar nem o abraço ao meu filho. As pessoas que fizeram isso com ele estão tendo o direito, que foi tirado dele naquela noite. Estão com a família, filhos, mães. E nós? A única coisa que a gente pode fazer é uma visita ao cemitério”, compara. 

Suderly foi uma das primeiras mães da chacina a perceber que precisaria ir às ruas, pressionar e também quebrar preconceitos e estereótipos para que houvesse um julgamento justo. Sofreu ao ouvir na TV, um dia após o crime, que o filho seria um traficante. “Diziam coisas que ele nunca foi. Diziam que eles eram de gangue. Liguei imediatamente para os jornalistas e chamei todos pra minha casa. Era a imagem do meu filho”, ressente-se. 

Diante disso, se colocou à frente. Viu cada uma das mães se reconstruir diante da luta. Entendeu que o tempo de cada um era singular. Conheceu- com a tragédia- cada uma das novas amigas. “Unidas pela dor”, explica. A empatia pelo que sentiam as uniu. Mesmo que os caminhos fossem diferentes uma das outras.

Suderly permaneceu morando na mesma casa, com o marido e a filha caçula. Diz que nunca se sentiu ameaçada depois do trauma. Ela hoje tem ainda mais motivo que medo de ficar em casa. A rua, no São Cristóvão, ganhou o nome de Jardel. A mãe às vezes esquece a homenagem. Mas não esquece, um instante do filho. Hoje ele é a dor que a acompanha. “Eles tiraram uma coisa de mim que eu não sei nem explicar a dor que eu sinto”. 

Sobre o luto que vivencia ainda hoje, ela desconfia que não cessará nem mesmo com o fim do processo judicial. Ela sabe que o tempo será longo até a sentença. “Agora que subimos um degrau. Tem praticamente uma montanha pra subir. Estamos mexendo com gente muito poderosa. Tem pelo menos um ano e meio pela frente”, calcula. Entre as mágoas que carregam, uma é a de nunca ter ouvido um pedido de desculpas. “Nem do Estado, nem da Polícia, nem dos que acusaram nossos filhos”, elenca uma mãe amargurada. Sem sorrisos, ela justifica a dor: “A gente dá um sorriso com os lábios, mas o coração infelizmente não sorri mais”, lamenta.

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