A cidade e sua ancestralidade

Escrito por Jéssica Welma , jessica.welma@svm.com.br

As gentes estão sempre apressadas na cidade: é a hora do trabalho, a hora da escola, a hora de chegar à consulta médica, a hora de ir ao banco... Dos carros, então, nem se fala, já que, claro, são eles que levam as gentes. Numa dessas horas de chegar ao trabalho, em plena terça-feira, uma fila de carros seguia apressada com suas gentes por uma rua do bairro Dias Macedo, pertinho do Aeroporto de Fortaleza. De repente, a velocidade foi reduzindo até parar. Numa fração de segundos, a dúvida sobre o que aconteceu foi se misturando à preocupação sobre o tempo que se estava perdendo. O pescoço se espicha para ver do que se trata: quis o destino que seis cabras, em sua aura de calmaria quebrada pelo tilintar dos chocalhos, decidissem atravessar o caminho das gentes apressadas.

Chega um dia em que a vida obriga que o ritmo reduza. E queiramos nós que essa obrigação se disfarce de parar para observar as cabras. Naqueles, sei lá, trinta segundos em que as cabras se impuseram ao meu caminho, eu ri. Ri porque o destino, antes de querer colocar as tais cabras no meu caminho, quis que eu virasse gente num pezinho de serra lá pras bandas da Caucaia. É perto, mas é o meu "sertão" (até porque água encanada e telefone só chegaram lá na casa dos anos 2000). E, por lá, as cabras podiam caminhar bem sossegadas, que nem as gentes do pé de serra. Naqueles 30 segundos, eu pensei algo que muito morador de Fortaleza já pensou um dia: a gente sai do interior, mas o interior não sai da gente.

Desde que vim morar em Fortaleza, e isso já tem mais de uma década, eu tenho meu caminho atravessado por paisagens do interior. Explico: primeiro fui morar no Mondubim, lá no final do mapa, chegando perto de Maracanaú. Quem bem se recorda da história da Capital sabe que o Mondubim já foi a "zona rural" da "zona urbana". As famílias ricas seguiam com suas charretes até suas casas de veraneio, para usufruir dos bons ares da lagoa do Mondubim. As grandes chácaras e suas árvores centenárias ainda estão por lá, mas a tal urbanidade dominou com força também nas últimas décadas.

Tal força não foi o suficiente para impedir que, em quase todos os dias nos quais eu caminhava um quarteirão entre minha casa e a parada de ônibus na avenida, galinhas e vacas cruzassem meu caminho. Pior, preciso confessar, as galinhas me assustam mais que as vacas. Mesmo assim, lá se ia eu pela estrada afora espantando as galinhas e passando longe das vacas com seus chocalhos.

Tem menos tempo desde que moro no Itaperi, colocado com o Passaré e vizinho de frente da Serrinha (pode olhar no mapa de Fortaleza, há, inclusive, um rio definidor de limites), mas eis que a natureza (nada selvagem) persiste em cruzar meu caminho, como no dia das cabras, o que me fez refletir sobre o fato de que toda cidade grande já foi um "interior".

Nem sempre Fortaleza foi a cidade dos grandes prédios, das poucas árvores e dos animais resumidos a "pets". As cabras atravessam nosso caminho para nos lembrar de que a Capital também tem sua ancestralidade que precisa ser vista e preservada. É preciso que haja lugar para todos: as gentes apressadas, os animais despreocupados e, especialmente, para as memórias que nos trouxeram até aqui. Quando a vida nos para, mesmo que por segundos, ela nos dá a chance do exercício de olharmos para o exterior com os olhos do interior, das lembranças, daqueles que viveram no passado e vivem em nós agora. É um encontro de pontas soltas. Pois, então, que mais cabras cruzem nosso caminho pelo singelo tempo de um respirar profundo em meio ao frenético urbano de cada dia.

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