A ausência saiu às ruas

Escrito por Dellano Rios , dellano.rios@svm.com.br
Legenda: A ausência saiu na rua e era impossível não a notar no trecho que cruzo do Centro

Há quase 20 anos, vi no cinema uma cena que se tornou uma das minhas favoritas. Tom Cruise dirige um carrão por ruas completamente desertas, saindo de um bairro de bacanas em Nova York e chegando a uma das principais vias da cidade. Luzes acesas, carros estacionados - nenhuma vivalma. A trilha? Uma canção perfeita, com um título ironizando aquele sonho mau: "Everything in its right place" (tudo em seu lugar certo), do Radiohead.

Não sei que música tocava no carro, na quarta-feira de manhã, quando eu cruzava a cidade para chegar ao trabalho. Os olhos constatavam o esvaziamento das ruas e avenidas, que foram perdendo seu movimento e sua vida desde a segunda-feira. Como quem tira as camadas de uma cebola, até não sobrar nada. Lembrei-me da cena do filme, mas o ataque de ansiedade fez os ouvidos moucos. Na hora, nem me lembrei daquela canção do Radiohead, e mesmo que fosse ela tocando naquela cápsula móvel, eu não teria me dado conta.

Se no filme o personagem não entendia bulhufas daquela terra inabitada, atrás do volante, eu sabia exatamente por que a Av. Bezerra de Menezes não parecia o inferno de sempre. A mesma razão que explicava o paradoxo de minha viagem demorada e desagradável ter se tornado rápida, porém ainda mais desagradável. Uma ameaça fantasmática, e real, pôs todos em alerta. Foi a ausência que saiu na rua e era impossível não a notar no trecho que cruzo do Centro.

No meio do caminho, parei num posto de combustíveis. Mais uma vez, o cinema emprestou suas imagens, dos viajantes que chegam por estradas desertas. Deserto de gente o da Antônio Sales. Não sei por que desci do carro. O frentista parecia indiferente a tudo, mas puxou conversa para quebrar o silêncio. Não reclamou do calor, nem sobre a chuva. Falou da doença. "E esse vírus?"

Nunca tive vocação para a diáspora do cearense, nem botei minhas infelicidades na conta de Fortaleza. Tampouco fui um apaixonado por suas ruas, do tipo que vê lirismo na combinação de suas belezas e imperfeições. Foi sempre a minha cidade, onde vivo, onde estão os meus. Claro, a memória afetiva por vezes sacode a gente. Outro dia, antes da pandemia, passei na frente da Galeria Pedro Jorge, no Centro. Foi onde aprendi a gostar de música, a comprar discos, e faz parte de um momento feliz da minha vida.

Mas será mesmo que a matéria da lembrança, o que realmente faz o coração palpitar, é aquela rua estreita, aqueles prédios com o elevador que me acertava em cheio se eu não fosse rápido em saltar para dentro e para fora dele? Nesses dias de ruas desertas, da precaução misturada com medo, fiquei com sérias dúvidas.

A geografia que nos faz sentir saudades de um lugar, de gostar dele, mesmo sem se dar conta, tem qualquer coisa que escapa aos arquitetos, engenheiros e mestres de obras. São as pessoas, aquela multidão de desconhecidos que, com impaciência e misantropia, pedi muitas vezes que sumissem dali. Bem, agora que não estão, revogo meus desejos antissociais. Na hora certa, claro, aquela que for melhor para todos. Sartre disse, numa peça famosa, que o inferno são os outros. Talvez. Mas ainda prefiro um inferno povoado ao limbo das esquinas vazias.

Os dias povoados de ausência vão passar, a História ensina; ao custo de quanto sofrimento, não há futurologia que responda. Vai chegar o dia em que meu trajeto voltará a ser demorado, dessa vez, suportavelmente demorado. Como todo mundo, não vejo a hora de as ruas se encherem. E que o silêncio deixe de alimentar a ansiedade. A música então voltará a tocar nos meus ouvidos - e dessa vez vou saber dizer o que cantam seus versos.

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