89% dos atendimentos feitos pela Rede Acolhe são com mulheres

De homicídios a despejos forçados, dos 138 casos de violência relatados por parentes de vítimas acompanhados pelo programa da Defensoria Pública do Ceará, quase 90% eram do gênero feminino

Escrito por Felipe Mesquita , felipe.mesquita@svm.com.br
Foto: Ilustração: Louise Dutra

"Fiquei com as minhas mãos no ouvido, orando ao Senhor para evitar o pior". Enquanto o coração de mãe aflito intercedia aos céus pela vida do filho, o medo de perder o primogênito tornou-se dor física. Dois tiros ceifaram os planos de toda uma família. Era janeiro de 2018, data inevitavelmente fixada na alma de Luiza (nome fictício para preservar a sua identidade). Na fé, ela busca forças para lidar com as marcas deixadas pela ausência do garoto. A convicção em Deus, cita, a tem ajudado a ressignificar o sofrimento através também de "verdadeiros anjos aqui na terra".

Luiza encontrou na Rede Acolhe da Defensoria Pública do Ceará assistência integral no âmbito jurídico e psicossocial para vencer os traumas do contexto de vulnerabilidade em que viveu. De junho de 2017, quando o programa foi criado, até junho deste ano, 220 casos de violência direta e indireta foram acompanhados pelo órgão estadual. Dos 138 atendimentos registrados somente a parentes, 123 eram mulheres, número correspondente a 89,08% do total, o que reforça a urgência de políticas assistenciais a pessoas do sexo feminino.

As informações constam no relatório do Núcleo de Estudos e Pesquisas (Nuesp) da Escola Superior da Defensoria Pública (ESDP). Dentro do recorte por gênero, o levantamento aponta que as mães respondem por 60,86% das assistências concedidas, sendo o grupo que mais procurou a Rede Acolhe após eventos de violência, seguido por irmãs (12,31%) e avós com 6,52%. Esposas somaram 5,07% dos acolhimentos, filhas e tias 1,44%, enquanto companheiras e sogras, juntas, 0,72% cada.

Cenário

Diante dos altos índices de violência em 2017 - quando o volume de Crimes Violentos Letais e Intencionais (CVLIs) chegou a 5.023, o maior desde 2013 -, o programa de acolhimento saiu do papel para diminuir a possibilidade de haver novos homicídios, uma vez que as famílias de vítimas demonstravam insegurança e medo depois dos crimes. Nesse cenário, a Rede Acolhe atendeu famílias com demandas diferentes.

Em dois anos, foram observados 135 casos de assassinatos, 26 de ameaças de morte, 25 de tentativas de homicídio, 21 por despejo forçado, 6 de violência institucional, 4 de femicídios e outros três por desaparecimentos. Neste intervalo de tempo, as mulheres continuaram liderando os atendimentos com pequenas variações: se em 2017 eram 79%, entre julho a dezembro de 2018, elas foram 94% dos acolhimentos. Já nos seis primeiros deste ano, 90%.

"Se a gente não olhar para essas mulheres, elas não vão conseguir suspender esse ciclo de violência, elas se tornarão também reféns, assim como seus familiares. Então, a nossa primeira preocupação é garantir essa assistência", explica a defensora pública geral do Ceará, Mariana Lobo, sobre a necessidade de amparo legal às vítimas.

Conforme Mariana, os atendimentos precisam ser individualizados tendo em vista o contexto social de cada mulher. "Primeiro é observado os casos de vulnerabilidade. É comum, por exemplo, depois de um homicídio, eles mudarem de casa ou bairro, são os chamados despejos forçados. Por isso, é importante garantir a moradia, o acesso à rede pública de saúde para cuidar dos danos psicológicos e também à educação".

Morte

Antes mesmo de perder o filho, a dona de casa Luiza já enfrentava o drama de estar num ambiente de violência extrema. Esta situação ganhou traços ainda mais preocupantes depois que foi morar em uma unidade habitacional de Fortaleza com a família. O novo endereço trouxe consigo os episódios "mais difíceis" dos seus 51 anos de vida. Com o filho dependente químico, ela e a nora se viam obrigadas a pagar as dívidas feitas por ele ao mesmo tempo em que testemunhavam o usuário de drogas ser seduzido pela organização criminosa que dominava o bairro.

"Eles queriam que o meu filho roubasse uma moto e matasse um policial, mas ele não era capaz de fazer isso porque era uma boa pessoa, não tinha nenhuma maldade, só usava a droga dele e não mexia com ninguém", revela Luiza. Foram muitas as negativas do filho. "Por vezes, ele me disse: 'Mãe, fica tranquila, eu não vou matar ninguém, meu negócio é só drogas'", lembra ela, que disse viver de constantes ameaças nas semanas que antecederam ao assassinato do filho.

Depois de muitas investidas, o grupo desistiu. Partiu para a medida extrema. Era noite do dia 8 de janeiro do ano passado quando dona Luiza ouviu o chamado na porta de casa. Ali, já sabia que algo de ruim pudesse acontecer. "Os caras já chegaram perguntando por ele e disseram que só queriam conversar. Eu ainda ofereci dinheiro para eles irem embora, disse que o meu filho nada devia, mas não adiantou. Se eu não abrisse a porta, ia sobrar pra mim também", relata.

A intimidação fez a mulher chamar o filho e "autorizar" a entrada dos membros da facção. Levado de dentro de casa pelo braço, o homem não conseguiu se despedir da mãe. Do quarto onde estava dormindo, ele foi direto para o "tribunal do crime", como detalha, em frases curtas e com pausas de choro durante a entrevista. "Me sentei no banco vendo o meu filho indo. Orei de novo ao Senhor para aquilo não acontecer. Às 22h, recebi a notícia de que ele tinha sido morto com pauladas e dois tiros na cabeça. Meu mundo se acabou naquele momento". Silêncio.

Recomeço

Não bastasse o assassinato do filho, Luiza foi expulsa de sua própria residência três dias depois do crime. Os mesmos suspeitos do homicídio deram a ordem. De lá, ela conseguiu aluguel social por intermédio da Rede Acolhe, cujo programa fez bem mais que conseguir uma nova moradia. Em cada encontro com os defensores, conta Luiza, "esperança e alegria" têm ocupado o lugar da solidão para que as feridas abertas na alma sejam cicatrizadas.

"Para mim, o nome já diz tudo. Todas as doutoras conversavam sempre comigo, pediam para eu não desistir e diziam que ia dar certo. Eu ia desesperada e elas sempre me acolhiam. Se chegava chorando, saía sorrindo", comemora Luiza que sentencia: "Às vezes tudo que a gente mais precisa é só de um abraço e uma palavra de apoio".

De acordo com Mariana Lobo, o retorno dado por cada mulher permite à Defensoria Pública do Ceará avançar no sentido de planejar e executar políticas "mais concisas" a todas as vítimas assistidas. "A gente percebe que elas se sentem mais seguras, é verdade. E através disso nós estamos mapeando o perfil das mulheres que nos procuram, qual a violência que elas sofreram para, então, saber como nós podemos trabalhar para garantir os direitos dessa população", afirma a defensora pública.

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