16% da população de Fortaleza está concentrada em favelas

Das 441.937 pessoas que residem em favelas em todo o Ceará, chama a atenção que 89% estão concentradas na Capital

Escrito por Redação ,
Legenda: Quem trafega pela Rua Tenente Benévolo, no cruzamento com as ruas José Vilar e Nunes Valente, não faz ideia do emaranhado de becos que formam o Campo do América
Foto: Fotos: Fernanda Siebra

Assentamentos irregulares, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, aglomerados subnormais - como prefere chamar o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) -, são algumas denominações utilizadas em todo o Brasil para referir-se à favela. Em Fortaleza, 16% da população vive nesse modelo de organização do espaço, totalizando 396.370 pessoas. O índice é quase três vezes maior que a média nacional, de 6%.

Das 441.937 pessoas que residem em favelas em todo o Ceará, chama a atenção que 89% estão concentradas na Capital. Localizadas em toda a cidade, elas somam 509 comunidades. Além de Fortaleza, também existem favelas nos municípios de Aquiraz, Camocim, Caucaia, Granja, Guaiúba, Itaitinga, Juazeiro do Norte, Maracanaú, Maranguape, Pacatuba, Pentecoste, Quixadá e Senador Pompeu. Os dados são da publicação "Aglomerados subnormais", do IBGE, referentes à 2010.

Quem trafega pela Rua Tenente Benévolo, no cruzamento com as ruas José Vilar e Nunes Valente, não faz ideia do emaranhado de becos que formam o Campo do América. Para quem passa, parece que a comunidade fica invisível. Apesar de viver rodeada de "arranha céus", Célia de Sousa Silva, 58, que há 52 anos mora no local, diz que não trocaria o Campo do América por nenhum prédio do entorno.

"Me sinto bem aqui, sou feliz com a minha gente, com o meu meio. Eu jamais sairia, porque esse lugar faz parte da minha história. Aqui cheguei criança, estudei, casei, tive filhos, já sou avó. Isso daqui é a minha família. O Campo do América é o nosso campo de futebol? É. Mas é também o nosso playground, o nosso jardim, o nosso quintal. É o nosso bem maior", destaca.

Apesar de estar localizada no melhor da Aldeota e do Meireles - áreas supervalorizadas - são muitas as deficiências que a comunidade enfrenta. A principal delas, aponta Célia, é a falta de um posto de saúde nas proximidades. Falta também um trabalho direcionado às crianças e aos adolescentes para que saiam da ociosidade. "Como a gente não pode barrar os que já estão avançados nas drogas e na criminalidade, temos que prevenir trabalhando essa turma de 7, 8, 12 anos, para que eles tenham um futuro melhor", salienta.

Reforma

Ao todo, 67 jovens fazem parte da Liga Desportiva Cultural e Beneficente do Campo do América e Adjacências. Gregório Silva, presidente da entidade, ressalta que, com a reforma do Campo do América, houve uma melhora significativa entre os jovens. "Antes, não tinha aquele incentivo. Como era de areia, os meninos pegavam bicho do pé, cobreiro. Depois que se transformou em um campo, toda criança quer vir jogar bola. Mas, não querermos parar por aí", afirma.

Silva reforça a necessidade de trabalhar as crianças que estão entre 6 e 10 anos. "Elas precisam começar a ver o mundo de uma forma diferente. Depois que saem do futebol, elas podem voltar para casa, mas algumas permanecem nas ruas e acabam vendo o tráfico de drogas", conta.

Preto Zezé, presidente nacional da Central Única das Favelas (Cufa), afirma que é preciso resolver o que se chama favela. Ele observa que o nome favela, em si, já carrega um estigma. "Na medida em que eu só vejo o Campo do América nas páginas policiais, como lugar violento, a tendência é que o estado mande para cá mais polícia do que postos de saúde, mais repressão do que escolas, mais segurança do que oportunidade para os meninos, o que vai acabar gerando ainda mais violência. É o que a gente tem visto", aponta.

Com o avanço da economia brasileira, acrescenta, a favela melhorou da porta para dentro. "Por fora, as casas continuam humildes, mas se você entrar vai encontrar produtos que até então faziam parte somente da lista de consumo de outras classes sociais. Mas, a parte que cabe ao estado, ainda está muito aquém, principalmente o saneamento básico. Quase metade das comunidades ainda está sem acesso a saneamento básico, o que é gravíssimo", critica.

Zezé defende que o Estado tem que ouvir as pessoas. "Quanto mais elas participarem, quanto mais o estado ouvir a sociedade, mais as ações dele serão eficazes, porque não vai vir de cima para baixo, não vai ser algo que o cara pensou do gabinete".

Conceito  é ligado à propriedade de terra

Para José Borzacchiello, pós-doutor em Geografia Humana e professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), o conceito de favela está intimamente ligado com a questão da propriedade de terra. Ele explica que se a pessoa tem a propriedade de terra e faz uma habitação precária, ela é proprietária e não favelada. Porém, ela pode ter uma residência melhor, mas se estiver localizada em um bairro de favela e não foi sujeita a regularização fundiária, é favelada.

"O que é a titulação? É o sonho do favelado e, ao mesmo tempo, é o sonho do Estado em formalizar o informal. Começar a cobrar Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), colocar tarifas, taxas, impostos. Com essa processo, você formaliza", afirma. Borzacchiello acrescenta que há um duplo interesse, tanto por parte do estado em formalizar, como também da sociedade, principalmente dessas famílias que estão nessas áreas que são estigmatizadas. "Elas são tão marcadas, que camuflaram o nome 'favela' para comunidade. Quando você fala comunidade, está falando favela, então não falseia a realidade", frisa.

Área de risco

Em Fortaleza, as favelas estão por toda parte. Contudo, esclarece o especialista, em uma discussão da relação entre sociedade e natureza, surge um novo conceito: o de áreas de risco - que vai ser sempre ocupada pelos pobres. "Pobre na duna é área de risco, mas rico na duna é área de rico", afirma enquanto observa, da varanda de sua casa, durante esta entrevista, o Morro Santa Teresinha e o bairro Dunas - que evidenciam o contraste entre a duna rica e a pobre.

Com o conceito de área de risco, as políticas públicas foram para remover, avalia Borzacchiello. Ele destaca, ainda, que a precariedade da habitação não é só na favela. "Se for computar habitação precária, vai além".

Fique por dentro

As comunidades como o lugar do "outro"

"Para as elites e as camadas médias brancas, e, não raro, para os governantes, favela foi e tem sido o lugar do 'outro'. Ora ela simbolizava o espectro noturno a assombrar a cidade, vampirizando a riqueza e aniquilando a paz e o sono dos justos, ora a alvorada romantizada, a promessa do amanhecer, pois, afinal, como dizia a canção, 'quando derem vez ao morro toda a cidade vai cantar'.

Em vez de bairros populares reais com suas diferenças e especificidades, onde relações sociais extremamente complexas se estabeleciam, o título - favela - construiu imagens dotadas de elevado índice de artificialidade, repletas de ideias preconcebidas, estigmas e romantizações".

Fonte: Luiz Eduardo Soares, no livro "Um país chamado favela", de Renato Meirelles e Celso Athayde

Luana Lima
Repórter

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