Professor ensina técnicas de defesa pessoal em abrigo de pessoas trans no Grande Bom Jardim

Além do ensino da arte marcial, aulas também abordam discussões sobre a representatividade no esporte

Escrito por Redação , metro@svm.com.br
Jiu-jitsu Casa Transformar
Legenda: Material para realização das oficinas, como tatame e kimonos, foram doados para o projeto
Foto: Arquivo Pessoal/Casa Transformar

Desde o começo de outubro moradores da Casa Transformar, abrigo que acolhe pessoas trans, localizada no bairro Grande Bom Jardim, em Fortaleza, recebem aulas de jiu-jitsu gratuitas para defesa pessoal. A oficina é ministrada na Organização Não-Governamental (ONG) pelo professor Milton Leite e mais quatro voluntários, e foi pensada para trabalhar a proteção física das pessoas na casa, além de promover debates sobre o esporte.

Ao todo nove moradores, todos mulheres ou homens trans, frequentam as aulas. A oficina levada para a Casa está dividida em dois momentos. No primeiro, os alunos refletem sobre conceitos de jiu-jitsu, defesa pessoal e lugar da pessoa trans no esporte. O segundo é voltado para a atividade física, de contato, no tatame. “Fazemos essa discussão para que a gente possa se aproximar mais. Dedicamos aos temas transversais, como preconceitos, nomenclaturas corretas, toda uma parte teórica sobre o mundo trans e o esporte. Depois, a gente passa para a prática. As aulas não são adaptadas, aplicamos tudo do esporte”, explica o professor Milton Leite, responsável por ministrar as aulas.

Na avaliação de Milton, essa aproximação também teve como consequência uma reflexão pessoal. “A cada treino existe uma quebra de paradigmas. É um contato físico muito intenso. Aos poucos, todo mundo vai vendo que o respeito vale para todos. Existem momentos muito legais nessa troca. Eu desafiei elas no jiu-jitsu e elas me desafiaram no bate-cabelo”, brinca o professor.

Se depender de Milton, o curso deverá ser alongado e ele pretende que o desporto permaneça no abrigo até depois da oficina. “A ideia é que ele seja bem alongado. Fico lá até que algum aluno da Casa esteja pronto para reproduzir o mesmo trabalho que eu levei para lá”, garante. 

Casa Transformar
Legenda: "Ninguém está acostumado a ver uma travesti de kimono", pontua Nick Hot, uma das frequentadoras das oficinas
Foto: Arquivo pessoal/ Casa Transformar

Quebra

O contato com a Casa Transformar partiu do próprio Milton no começo deste ano, após conhecer as ações do abrigo nas redes sociais. “Começamos a conversar por Instagram em março. Mas veio a pandemia e tivemos que parar a negociação. Voltamos agora em outubro depois de uma rodada de doações de equipamentos”, relembra. A ideia da oficina nasceu de um desejo de Milton, que fez carreira nas causas solidárias. “Eu atuo há 20 anos em diversos projetos. As pessoas me perguntam o motivo e eu respondo sempre que faço tudo o que posso me aproximar de alguns grupos e tirar as pessoas da rua”, relata o professor. 

Fundadora da Casa e uma das alunas do curso, Nick Hot pontua que os benefícios trazidos pela chegada do esporte no abrigo vão além do exercício físico. “Está sendo incrível porque ajuda tanto a saúde física, a sair do sedentarismo, quanto na auto-estima das meninas. As pessoas aqui têm muita disforia devido a um padrão de gênero que a sociedade impõe sobre os nossos corpos. A disforia é quando alguém não aceita ou não se sente confortável com uma determinada característica física sua. O jiu-jitsu reduz esse desconforto”, relata. 

Embora as técnicas de defesa sejam a prioridade, a aluna conta que trazer a representatividade para o esporte é outro assunto abordado nas aulas. 

“O jiu-jitsu entra na Casa também para mudar o cenário do esporte em si. Ainda é um meio muito transfóbico. Eu fiquei muito grata ao Milton por esses momentos. Estamos ocupando espaços que as pessoas nos invisibilizam. Ninguém espera ver uma travesti em um kimono”, reflete.

Assim como Nick, Milton também defende a entrada de outros perfis no desporto como forma de acolhimento, principalmente em âmbito competitivo. “Treinamos aqui com todo mundo, eles e elas. A gente tem dificuldade junto às federações. Por ser uma discussão nova, como vamos inscrever uma mulher trans no campeonato? Isso ainda é muito novo”, complementa o professor. 

Por enquanto, as aulas estão limitadas aos moradores da Casa Transformar. “Várias pessoas nos procuraram para participar da oficina. Mas como os casos de Covid-19 estão aumentando, restringimos só para quem já está na casa. Eles são a nossa prioridade”, reforça Nick. 

Doação 

A Casa Transformar aceita doações tanto de equipamento para as aulas, como tatames e quimonos, quanto de eletrodomésticos, materiais de higiene e produtos não-perecíveis. É possível contribuir com o projeto através das redes sociais do projeto e da campanha de arrecadação virtual.