“Não é proibido voar”: mulheres do Grande Bom Jardim lançam coleção de roupas após formação em moda

Todas as etapas da produção, desde o marketing até a costura, foram pensadas por moradoras de baixa renda da região

Escrito por Redação , metro@svm.com.br
Mulher segura trabalho de arte-terapia
Legenda: Peças devem trazer relação entre as participantes e a comunidade do Grande Bom Jardim
Foto: Arquivo Pessoal

Com mais de 30 anos de experiência com roupas, Sebastiana Freitas, 43, quer “aprender o novo”. Artista circense e costureira, ela recorreu à iniciativa comunitária Movimento Saúde Mental (MSM), no Grande Bom Jardim, em Fortaleza, “para melhorar”. Sebastiana é uma das 50 contempladas pela oficina Ateliê Florescer, que aconteceu entre agosto e setembro deste ano. O projeto levou para as mulheres da comunidade formação em moda, que agora preparam o lançamento, em outubro, de uma coleção de roupas.

O grupo é formado por mulheres de até 65 anos, em situação de vulnerabilidade econômica. A previsão é que a primeira coleção do projeto, intitulada “Não é proibido voar”, esteja exposta até o dia 10 nas redes sociais do MSM. Serão 50 peças, entre blusas, vestidos, chapéus, shorts e saias infanto-juvenis, criadas do zero pelas participantes, com apoio de profissionais do ramo. As contempladas contam com a ajuda de filhos e sobrinhos, modelos provisórios, para expor as peças

A temática escolhida nas oficinas tem motivação única: falar sobre a comunidade.

“O Bom Jardim é visto como perigoso, violento. Queremos mostrar as coisas boas também”, ressalta Sebastiana. “Toda a nossa linha fala sobre sonho. A gente ousou sonhar. No nosso Bom Jardim existem coisas maravilhosas. A gente traz isso nas nossas peças. Colocamos desenho de pipas, de pião, essas brincadeiras de rua”, conta.

Ela, conhecida na comunidade pelo nome circense Tiana, já que “ninguém deixa de ser artista”, também vê o isolamento social como inspiração para a ponta da agulha. “Está todo mundo dentro de casa e a gente sonha que está na rua. Quando a gente sonha, a gente voa como uma pipa. Nem que seja só na mente”, brinca a costureira.  

Formação

O percurso formativo recebeu apoio da Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza (Secultfor), através do VIII Edital das Artes. Foram dez oficinas relacionadas à moda: empreendedorismo, modelagem, marketing, bordado, figurino, vitrinismo, direitos humanos, educação ambiental, rodas terapêuticas e criatividade em moda. A última foi ministrada pelo estilista cearense David Lee. Por conta da pandemia, as turmas foram limitadas a, no máximo, dez participantes. 

Orientação Arte-terapia
Legenda: Produção foi acompanhado por profissionais da moda. Decisões criativas, contudo, foram tomadas pelas participantes
Foto: Arquivo Pessoal

A coleção, explica Isabel Viana, arte-terapeuta e coordenadora do Ateliê Florescer, é resultado desse momento inicial. “A ideia principal é que ela seja a finalização do que foi aprendido durante as oficinas. Reunimos as expertises. Têm mulheres que cortaram, que fizeram a modelagem, que bordaram, que só costuraram. É um fechamento”, indica. 

Apesar da ideia da exposição virtual ser recente, o Ateliê já estava entre as ações promovidas pelo Movimento Saúde Mental, que atua há 24 anos no Grande Bom Jardim. Quem frequenta o Centro, contudo, sai com mais do que uma experiência técnica. 

“Também trabalhamos autoconhecimento e autonomia. No âmbito da moda, nós temos o Ateliê Florescer, mas também existe uma escola de gastronomia. Oferecemos cursos de educação profissional com momentos de vivência terapêutica. Ninguém empreende nada estando deprimido, em uma posição vulnerável”, pontua Isabel.

Expor os produtos, explica a arte-terapeuta, traz visibilidade para as mulheres da região e possibilita novos caminhos profissionais. “Nem todas que participaram eram costureiras. Elas ficaram livres para escolher o que quiseram. Quando expomos esse trabalho nas redes, marcando quem fez, mostramos o que elas fizeram. É uma vitrine, também”, diz. 

A ideia é que o ensaio fotográfico com os familiares, que entraram na dinâmica como modelos das peças, também compreenda as experiências do bairro. “Escolhemos locais conhecidos pela comunidade. São locais compartilhados para que essa afetividade entre nas fotos, também”, garante a coordenadora. 

Acolhimento

Durante o processo terapêutico, acompanhado por uma psicóloga do grupo, os pedaços de pano disponibilizados na oficina deixam de ser somente matéria-prima e viram metáforas, relembra Tiana. 

Grupo de arte-terapia
Legenda: 50 mulheres participaram da ação formativa
Foto: Arquivo pessoal

“Nossa psicóloga pegava os retalhos que a gente trabalhava e usava para falar sobre mudança. Ela dizia que aqueles pedaços de pano mostravam o que podia mudar na gente. Tanto trabalhamos com os retalhos, como com desenhos. Tudo englobado com a costura”, relembra Tiana, que vê a dinâmica como necessária para o sucesso da coleção. “A gente precisa estar bem para receber o novo”, diz. 

O fazer da linha e as conversas com outras mulheres também foram catárticos, admite a costureira-artista.

“Eu fui acolhida. Mesmo com o distanciamento, me acolheram com palavras e com olhares. Eu acreditava que estava fechada para o mundo mas ali, eu vi que não. Poderia achar que já sabia, que o que aprendi já era suficiente. Mas vi que aquilo dali era o novo, que eu podia ganhar mais espaço”, completa a artista

Por enquanto, a coleção está na linha de produção, com o recorte e a montagem das peças. “Estamos empolgadas”, ressalta Tiana. “Assim, nosso grupo cada um deu uma ideia, foi tudo pensando em conjunto e estamos aqui fazendo. Tentamos um rascunho, depois outro e estamos na torcida para ver o produto final”, afirma a participante.