Falta de energia após chuvas eleva pressão contra Enel CE, campeã de reclamações no Decon há 4 anos

No Ceará, a empresa tem contrato desde 1998 com validade até maio de 2028, e assim como em outros estados está no centro de uma série de insatisfações dos consumidores

Escrito por Thatiany Nascimento , thatiany.nascimento@svm.com.br
Funcionário da Enel trabalhando
Legenda: No Carnaval de 2024, a falta de energia em meio às chuvas intensas, gerou ainda mais reclamações sobre o declínio da qualidade do serviço da concessionária entre quem paga por ele
Foto: Divulgação Enel

Acúmulos de queixas sobre a qualidade da prestação do serviço, reclamações sobre a interrupção ou instabilidade no fornecimento de energia, cobrança irregular e danos em aparelhos elétricos causados por falhas na distribuição, dentre outras. Esse é o cenário de dificuldades que envolve a Enel Distribuição Ceará, concessionária responsável pelo fornecimento de energia elétrica no Estado, e a percepção dos usuários, pelo menos, nos últimos 4 anos.

No Carnaval de 2024, a falta de energia em meio às chuvas intensas, gerou ainda mais reclamações sobre o declínio da qualidade do serviço da concessionária entre quem paga por ele.

Nos dias de Carnaval, sobretudo, entre sábado (10)  e domingo (11) o fornecimento de energia foi prejudicado em diversos bairros de Fortaleza e em localidades da Região Metropolitana. Na capital, em casos extremos, conforme mostrado pelo Diário do Nordeste, um condomínio no Bairro de Fátima chegou a ficar 34 horas sem energia. A  interrupção ou oscilação no fornecimento também foi registrada em cidades como Eusébio, Beberibe e Cascavel. 

Em resposta, a Enel disse que reconstruiu 12,2Km de rede destruída pelas chuvas no feriado, quando houve "621 ocorrências de galhos sobre a fiação e quedas de árvores", em Fortaleza e na região metropolitana. Na ação, ainda foram substituídos 56 postes e 41 transformadores trocados. A Companhia indica que, em 48 h, "recuperou a energia de mais 90% dos clientes" e, até terça-feira, foi 100% de recuperação.

O Diário do Nordeste aborda essa semana, em uma série de matérias, a atual situação dos serviços prestados pela Enel, o que tem sido feito e o que é necessário fazer para garantir a melhora e, por fim, se a quebra do contrato com a concessionária é uma possibilidade concreta. 

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Para além dessas ocorrências, as queixas contra a Enel vem “se consolidando” ano a ano. Desde 2020, a empresa lidera o ranking de reclamações no Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (Decon) do Ministério Público Estadual. Em 2023, a concessionária manteve essa liderança negativa. Mas, o que pode explicar esse desempenho e quem pode atuar para alterá-lo?

Queixas perduram

No Brasil, a Enel, companhia multinacional, está presente no Ceará, em São Paulo e no Rio de Janeiro. No Ceará, o contrato da empresa é de 1998 e tem validade até maio de 2028, e  o declínio na qualidade não é exclusividade das cidades cearenses. Nos outros estados em que atua, a prestação dos serviços também é motivo de queixas e mobilizações. 

Na cidade de São Paulo, recentemente, o prefeito Ricardo Nunes, pediu ao Tribunal de Contas da União (TCU) que fiscalize o cumprimento do contrato de concessão da Enel. Isso em decorrência da “situação de caos” vivida em novembro, quando fortes chuvas atingiram a cidade e o fornecimento de energia foi interrompido para 2,1 milhões de pessoas. 

Já no Rio de Janeiro, as prefeituras de Niterói e Areal, diante dos seguidos episódios de falta de luz, entraram, no mês passado, com uma ação civil pública contra Enel exigindo que a concessionária ofereça um "serviço eficiente e mais ágil", com mais equipes nas ruas e um plano de contingência para emergências. A situação nos dois estados rendeu aplicação de multas a Enel por parte da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) em R$ 278,6 milhões, só na segunda semana de fevereiro. 

No território cearense, a Enel atua na distribuição de energias nos 184 municípios. A base comercial da Companhia abrange cerca de 4,2 milhões de unidades consumidoras, sendo 2,1 milhões de residencial convencional. 

Piora no desempenho

Na década de 2010, quando foi adquirida pela Enel Itália, a antiga Coelce (que mudou de nome em 2016) alcançou bons resultados em rankings nacionais. Mas, nos últimos anos, a situação vem se alterando. A percepção negativa tem predominado ancorada em dados registrados formalmente junto aos órgãos fiscalizadores e de proteção dos consumidores. 

Para se ter dimensão, no Decon Ceará, em 2019 a Enel Ceará ocupava a 3ª posição no ranking de queixas, com 1.640 reclamações naquele ano. No ciclo seguinte, em 2020 passou a liderar a lista de queixas, com 2.649 registros, 2021 (2.706 reclamações), 2022 (1.911) e em 2023 se manteve na liderança negativa, com 2.633 queixas registradas. 

Principais reclamações entre 2020 e 2023, segundo Decon:

  • Cobranças de tarifas, taxas e valores não previstos;
  • Demanda não resolvida no SAC;
  • Cobranças por irregularidade ou defeito na medição;
  • Problemas no parcelamento de dívida;
  • Cobrança por serviços não realizados;
  • Interrupção ou instabilidade no fornecimento de energia;
  • Atraso do boleto ou fatura;
  • Negativação indevida

No ranking nacional, em 2023, a Enel Ceará com 10.757 reclamações foi a 6ª distribuidora  com o maior número de queixas registradas na Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), instituição que tem a competência de regular, estabelecer regras e fiscalizar a distribuição de energia no país. Em 2022, a Enel Ceará foi a 7ª empresa com mais queixas, com 9.622 ocorrências. 

Principais reclamações em 2023, segundo Aneel:

  • Falta de energia;
  • Problemas na conexão de sistemas de microgeração;
  • Extensão de rede;
  • Oscilação de tensão;
  • Variação de consumo;
  • Fatura de microgeração;
  • Religação;
  • Interrupção frequente.

Evidências da queda na qualidade no serviço também são registradas no documento chamado “balanço de sustentabilidade” feito pela própria Enel anualmente. Desde 2020, o índice de satisfação de qualidade percebido pelos consumidores e que consta no relatório da Enel está em queda no Ceará. Naquele ano, o índice era de 70,90%; em 2021 passou para 59,80% e em 2022 ficou em 58,60%. O de 2023 ainda não foi divulgado. 

Somente no ano passado, o Diário do Nordeste reportou situações como a de moradores de Fortaleza, de bairro mais distante do Centro, que sofrem com a queda de energia e a baixa potência e a de residentes do Eusébio, cidade da Região Metropolitana de Fortaleza, que relatam dificuldades na distribuição de energia elétrica há anos. 

Já na virada de 2022 para 2023, diversos municípios cearenses sofreram, de forma paralela, efeitos da falta de energia. Moradores e visitantes das praias de Canoa Quebrada, Icaraí de Amontada, Cumbuco, Flecheiras e Águas Belas relataram que ficaram mais de 48h sem o serviço.

No Ceará, a queda na qualidade dos serviços rendeu inclusive, em agosto de 2023, a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), na Assembleia Legislativa, para investigar supostas irregularidades e abusos por parte da Enel e avaliar o contrato de concessão pública com a multinacional. Na época, todos os 46 aprovaram a iniciativa. 

A expectativa é que os trabalhos da CPI sejam concluídos neste semestre e um dos objetivos é fazer com que a Enel apresente um plano concreto de melhorias no serviço prestado. 

O que tem afetado a prestação do serviço? 

Questionada sobre os fatores que têm afetado a prestação do serviço da Enel no Ceará, a presidente da concessionária no Estado, Márcia Sandra, admite que a empresa tem ciência das queixas e atua para "corrigir erros". Mas, segundo ela, no que se refere à qualidade dos serviços, fatores externos ao trabalho da empresa têm interferido na prestação do serviço. 

“Em 2023, nós fizemos um trabalho para colocar em dia uma grande volumetria de obras de novas conexões de clientes que tinham uma obra associada (com uma carga adicional que precisa preparar o sistema). Foi um trabalho durante todo ano. Um investimento pesado para que a gente pudesse zerar o backlog (tipo de lista de tarefas/pendência a serem resolvidas). Tínhamos em torno de 12 mil obras pendentes dos últimos anos e conseguimos chegar em setembro com mais de 99% dessas obras executadas”. 
Márcia Sandra
Presidente da Enel no Ceará

De acordo com ela, o cenário de atraso na garantia do serviço gerou muitas reclamações, como as registradas na Aneel em 2023. “Já estamos hoje acima de 95%. Não temos mais backlog. As obras que estão chegando estão sendo executadas. É fato que tivemos muitos clientes com atrasos no ano anterior. E que houve, nesse ínterim, reclamações” completa. 

Foto: Kid Jr

Márcia também explica que, quando tem demanda por nova ligação de energia, se o cliente não tiver obra associada, a Enel consegue garantir o serviço em, no máximo, 5 dias. Mas, quando tem obra, é preciso a Enel “fazer orçamento, mandar para o cliente e o cliente aceitar o orçamento” diz. Logo, admite “houve realmente um delay e criou o backlog". 

No que diz respeito às reclamações sobre a qualidade, ela aponta que algumas variáveis externas foram críticas no processo em 2023 e aponta algumas dessas dimensões, são elas: 

  • Índice de chuvas superior ao vivenciado no Ceará nos últimos anos; 
  • Aumento no volume de descargas atmosféricas, os chamados raios. Alguns raios, explica Márcia, caem na rede de energia e danificam os equipamentos; 
  • Furto de cabos da rede de energia. Em 2023, relata Márcia, o furto de cabos foi de aproximadamente 240 km e isso gera descontinuidade no fornecimento. Em média, aponta, são 24 horas para fazer o recondutoramento. 

No balanço dos investimentos para melhorar o serviço no Ceará, ela aponta que em 2023 foram inauguradas 6 subestações em 2023 e contratados 570 eletricistas em Fortaleza e na Região Metropolitana para atendimento à emergência, de modo a agilizar os chamados dos usuários. “Também colocamos mais veículos pesados na rua. São 193 caminhões para atender, com capacidade de transportar mais materiais”, acrescenta. 

Para os próximos anos, a perspectiva, segundo Márcia, é “ampliar as melhorias para a região Norte do Estado. Trazendo mais presença e melhorando o tempo de atendimento dos clientes”. 

A quem compete monitorar?

Nesse cenário há dois tipos de instituições que podem atuar em favor da qualidade do serviço: os órgãos reguladores (como a Aneel e a Agência Reguladora do Estado do Ceará - Arce) e os de defesa do consumidor, como Decon e  Procon. 

No Brasil, os contratos de concessão com as distribuidoras de energia, como  a Enel Ceará, são de competência do Governo Federal. Nessa organização, cabe à Aneel fiscalizar a prestação do serviço e impor as sanções previstas em lei,  nos contratos de concessão e na regulação da agência. 

Conforme a Aneel, as sanções que podem afetar a Enel constam na Lei 8.987/1995 que trata das concessões do serviço público, e podem ser:

  • Advertências
  • Multas
  • Obrigação de fazer e, 
  • Recomendação ao Governo Federal a caducidade da concessão (extinção do contrato)

Os contratos de concessão, explica a Aneel, têm período de 30 anos. Questionada sobre o que pode ser feito diante do cenário negativo, a Aneel informou que em casos envolvendo distribuidoras de energia, “acompanha de forma permanente as condições de prestação do serviço e caso verifique a ocorrência de falhas graves e irreversíveis, poderia aplicar sanções que culminaram até na recomendação da caducidade ao poder concedente”. Além disso, destaca que para isso é “considerando um processo administrativo específico com direto ao contraditório e ampla defesa”.

Em paralelo, na defesa do consumidor, os serviços como o Decon tem atuado para obter respostas junto à concessionária e reverter prejuízos gerados aos usuários. Segundo o secretário-executivo do Decon, o promotor de Justiça Hugo Xerez, explica que o Decon o consumidor pode registrar a reclamação contra a empresa mediante envio de emails, ligações telefônicas, atendimento presencial e mensagens via Whatsapp. 

“Essas reclamações, antes mesmo da abertura do processo, são enviadas à ouvidoria da empresa para que responda os questionamentos do consumidor o mais breve possível e, caso a empresa não apresente uma resposta ao Decon ou ao consumidor sobre a demanda encaminhada, um processo administrativo individual é instaurado com possibilidade de aplicação de multa”.
Hugo Xerez
Promotor de Justiça e secretário-executivo do Decon

Outras ações de controle e fiscalização são realizadas pela Arce. De acordo com o presidente da Arce, Hélio Winston Leitão, a lei que instituiu a Aneel, ainda na década de 1990, definiu que a execução de atividades complementares de regulação, controle e fiscalização dos serviços de energia pode ser descentralizada pela União para os estados, via convênios de cooperação. 

Assim, a “Arce atua na execução das atividades de fiscalização delegadas por meio de contratos de metas firmados com a Aneel a partir de convênio de cooperação existente”, completa ele. Nesse sentido, a Aneel delega que a Arce atue em relação à Enel executando fiscalizações presenciais e à distância, sobre temas estabelecidos anualmente pela agência nacional a partir do monitoramento de indicadores de desempenho da Enel.

Transparência 

Para essa matéria, foram analisados dados do Decon/MPCE e a Aneel. Esses dados estão disponíveis na página do Decon e pode ser conferidos aqui, na aba "Painel de Monitoramento (nacional)", e também na página Disponibilizada pela Aneel, aqui

 

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