Cobras viram animais de estimação: 'manutenção é barata, não se alimentam todo dia como um cachorro'

Criadores de serpentes relatam dia a dia dos animais, com rotinas que vão de congelamento de comida a apresentações artísticas

Escrito por Lucas Falconery , lucas.falconery@svm.com.br
Cearenses criam cobras como animais de estimação
Legenda: Quem tem o desejo de ter uma cobra precisa buscar pontos comerciais ou vendedores autorizados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)
Foto: Thiago Gadelha

Olhar enigmático, bote ágil e potencial chance de machucar são traços que atribuem medo a quem vê uma serpente. Na contramão disso, cobras rastejam como bichos de estimação na casa de cearenses decididos a ter por perto o fascínio da infância ou o animal como parte do trabalho. Tutorar esse tipo de pet, no entanto, exige pesquisa e busca por criadouros legalizados.

No Ceará, a cobra Mel mora onde antes o seu tutor, o engenheiro de pesca Gabriel Facundo, de 42 anos, conviveu com outras 40 serpentes de um projeto de criadouro legalizado.

Ele adquiriu os primeiros animais há cerca de 20 anos. O interesse veio da infância no município de Jucás, interior do Ceará, onde via vários animais do tipo.

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A curiosidade da criança avançou até o momento em que Gabriel decidiu colocar um projeto para frente e chegou a criar cobras em um galpão adaptado para a permanência e alimentação dos bichos.

“Eu queria abrir um criadouro comercial, já que no Ceará não tem como eu queria fazer, para disponibilizar animais legalizados a quem tem interesse”, compartilha. Na época, os animais eram de 5 espécies diferentes.

Mas, por uma questão burocrática, Gabriel desistiu da ideia. “Ficou num impasse e eu tinha muitos bichos para alimentar, uma mão de obra, e preferi voltar para o meu ramo e ter apenas um animal de estimação mesmo”, detalha.

Mel
Legenda: Mel permanece com Gabriel como bicho de estimação
Foto: Acervo pessoal

A Mel, como é conhecida a jiboia de 1,80 metro, tem 8 anos e permanece na casa de Gabriel, que se diz conhecido como o “doido da família”, pelo interesse pelas serpentes. Porém, basta o convívio para quebrar esse estigma.

“Depois que você conhece, vê como é, gosta e até quer ter uma também”, comenta. Alguns vizinhos também demonstraram medo dos animais fugirem, mas nunca houve problema do tipo. A Mel, por exemplo, permanece num lugar definido.

“Ela tem um terrário e a cada 15 dias eu alimento com um coelho médio, que eu abato antes para não ter perigo, e dou ainda quente. Por instinto, ela ataca e se alimenta”, acrescenta. Os cuidados também exigem uma troca do substrato do espaço.

Essa rotina pode variar conforme a espécie, o que exige dedicação de quem se propõe a criar cobras. "As exigências são manter de forma adequada, sem maus-tratos, e quem adquire o animal precisa pesquisar para saber o que fornecer a ele", reforça.

Divulgação científica 

O biólogo Bruno Guilhon também começou a se encantar pelas serpentes ainda na infância, e durante a formação encontrou na aquisição de uma cobra uma possibilidade para atividades de divulgação científica.

E assim, em 2017, chegou um macho da espécie conhecida como salamanta da caatinga, a quem ele deu o nome de Naga. “Para que as pessoas vissem que as serpentes não são um animal tão assustador assim e que pode ter até um certo tipo de vínculo”, frisa.

Desde criança eu gosto de serpentes, sempre achei muito legal, e sempre tive empatia porque via pessoas matando. Um dos motivos para eu querer ser biólogo e trabalhar com educação ambiental foi justamente desmistificar as questões pejorativas
Bruno Guilhon
Biólogo

A rotina de cuidados com o Naga envolve a alimentação com camundongos, que podem ser adquiridos em lojas de produtos para animais. O alimento vem congelado, mas ele precisa ser esquentado antes de entregar para a cobra.

“As serpentes não vão se alimentar de algo que está claramente morto, elas têm esse instinto de caça e de predação”, detalha. Isso é feito, em média, a cada 2 semanas. Período em que também é feita a limpeza no terrário onde permanece.

“Apesar de ser um animal de alto valor para aquisição, a manutenção é muito barata, porque não se alimentam todo dia como um cachorro ou gato”, compara. Bruno também faz o chamado enriquecimento ambiental, que é tornar o ambiente parecido com a natureza com galhos e cordas para a cobra ter uma rotina mais saudável.

Nália
Legenda: Naga exige poucos cuidados na rotina, mas Bruno frisa a relevância dos cuidados específicos com as serpentes
Foto: Acervo pessoal

Mestrando em sistemática e membro do Núcleo Regional de Ofiologia (Nurof) da Universidade Federal do Ceará (UFC), o convívio com as serpentes não é novidade para Bruno. Diferente da realidade dos parentes, quando ele se tornou tutor do Naga.

“Na época eu morava com minha família e tinha um estranhamento, mas isso foi sendo quebrado aos poucos com o passar do tempo. O animal não ficava solto e eles olhavam de longe”, lembra.

Até o irmão pequeno do biólogo começou a interagir com a serpente e logo o animal passou a participar de programações ambientais na Praia de Iracema, no Centro Cultural Belchior, e em exposições na UFC. Hoje, Naga está em casa como animal de estimação.

Símbolo egípcio 

Quando a artista Pérolas Peninah, de 54 anos, começou a morar numa chácara pequena, passou a ver macacos, iguanas, roedores e várias espécies de cobras no cotidiano. Na época, ela via a matança das serpentes como um incômodo.

Foi a partir daí que ela começou a pesquisar sobre os animais para entender como funcionava o resgate e a soltura em ambientes adequados. Nesse processo, a artista despertou o interesse por criar um animal.

“Fora isso, eu sou artista, e a minha arte, a dança do ventre, vem da cultura egípcia, onde a serpente é símbolo de muitas facetas”, completa. E assim a jiboia Boa Hanckok, apelidada de Boinha, chegou na família há 11 anos.

animais de estimação
Legenda: A serpente convive tranquilamente com outros animais de estimação
Foto: Acervo pessoal

Boinha, apesar do nome no diminutivo, tem 2,8 m e 20 kg. A adaptação do animal com a família aconteceu de forma natural, mas Peninah ressalta a importância de observar quais comportamentos podem estressar o bicho.

Isso porque, no contato com a filha, a cobra se sentiu ameaçada e fez o movimento conhecido como “bafo da jiboia”, quando levanta e expira com força fazendo um barulho.

“Como um cachorro, se você põe a mão e afasta com medo, o animal percebe. Foi o que aconteceu com a Boinha, se sentiu acuada, levantou e soltou silvo da jiboia”, lembra. Mas o convívio logo foi bem estabelecido na família.

Apresentações
Legenda: Das pesquisas, a artista acabou se interessando por ter o animal para apresentações de dança
Foto: Acervo pessoal

O animal já participou de apresentações de dança e também de divulgação científica, como feiras de ciências em escolas. Devido ao tamanho, a alimentação precisa acontecer com ratos maiores ou em maior quantidade, e é feita a cada 40 dias.

“No caso da Boinha, ela preservou o instinto de caça. Então, às vezes eu tenho ratos congelados ou mesmo coelho, mas eu tenho que dar um rato vivo para procurar o cheiro e o calor para ela pegar”, detalha.

Processo para aquisição de uma cobra

Quem tem o desejo de ter uma cobra precisa buscar pontos comerciais ou vendedores autorizados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Os animais devem ter nota fiscal, certificado de origem e microchip.

Quando o bicho vem de outro estado, também pode ser repassada a licença de transporte durante a aquisição. Os interessados em ter uma jiboia, por exemplo - uma das espécies mais comumente comercializadas -, devem gastar, no mínimo, por volta de R$ 3 mil.

A maior proibição é a reprodução, mesmo de animais legalizados, os filhotes não têm legalidade porque só quem pode reproduzir é um criadouro comercial ou zoológico
Daniel Machado
Analista ambiental do Ibama

Já quem cuida de um animal silvestre, como é o caso das cobras, obtido de forma ilegal, pode ser multado entre R$ 500 e R$ 5 mil, além de detenção entre 6 meses e um ano. 

"Quem adquire hoje não precisa de nenhum cadastro junto ao Ibama ou outro órgão ambiental”, detalha Daniel Machado, analista ambiental do Ibama. O registro, portanto, se restringe apenas ao vendedor.

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