Antes do tempo: como impedir a adultização precoce de jovens criadores de conteúdo
A “Turma do Kaka”, grupo de adolescentes com meninas e meninos entre 13 e 17 anos que grava “mini novelas” e vídeos de humor no bairro Rachel de Queiroz, na periferia de Fortaleza, já acumulava milhões de curtidas no TikTok quando se viu no centro de um comportamento polêmico que tomou as redes sociais e acabou no Congresso Nacional: adultização de crianças e adolescentes "antes do tempo". Mentorados pelo jovem criador de conteúdo e influenciador digital Lucas Cauã, de 22 anos, eles tiveram de se reorganizar e mudar a proposta dos conteúdos.
Adultizar uma criança ou um adolescente é atribuir a eles comportamentos que só devem ser reproduzidos por adultos, e, assim, explorar a imagem deles. É contra essa prática que, no Ceará, o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), com respaldo da recém-promulgada Lei da Adultização, promete intensificar a fiscalização e garantir os direitos dos jovens.
Apesar de ser uma prática já conhecida há décadas, o termo ganhou holofotes em agosto, quando o influenciador Felipe Bressanim Pereira, o Felca, lançou um vídeo denunciando casos graves, que, inclusive, eram conectados como redes de pedofilia. O termo rapidamente acendeu alertas nos Ministérios Públicos estaduais, que se propuseram a estar mais vigilantes aos casos, que muitas vezes não chegam aos conselhos tutelares por medo de denunciar e por falta de conhecimento de pais e mães.
A “mudança de marca” e posicionamento do grupo da periferia de Fortaleza, que tem como carro-chefe a "Turma das Debochadas", ocorreu no mesmo mês do Caso Felca. Antes, eles publicavam vídeos com alusão a romance adolescente, por exemplo, mas apagaram alguns conteúdos e ficaram sem publicar por um período breve, até voltarem com um vídeo que trazia uma espécie de “manifesto” contra a adultização.
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“Percebi que temos que tomar cuidados mais elevados. Eu não posso influenciar crianças e adolescentes a namorarem. Por mais que os vídeos sejam de humor, a gente precisa prestar mais atenção, porque moramos em uma comunidade que nos apoia e vários jovens de outros bairros já vieram gravar com a gente”, explicou Lucas, o responsável pelos roteiros e publicação no perfil da Turma do Kaka.
Um dos lemas da turma é “se não estudar, não vai gravar”. Para o influenciador, é importante que os jovens estudem e não percam suas infâncias. As gravações ocorrem geralmente à noite, após os turnos escolares, e levam cerca de duas a três horas, e sem nenhum tipo de vínculo ou obrigação.
Esta é a primeira reportagem da série "Antes do tempo", que fala sobre a adultização precoce de crianças e adolescentes e como isso pode afetar o futuro dos jovens, além de se propor a trazer estratégias do Ministério Público contra esta prática.
Segurança em primeiro lugar
É esse olhar mais cuidadoso que o Programa Primeira Infância em Primeiro Lugar, criado pelo MPCE em maio deste ano, pretende disseminar. A chamada primeira infância é o período entre 0 e 6 anos, quando as crianças estão em uma fase de desenvolvimento crucial, e devem ser preparadas para o mundo.
Dairton Oliveira, promotor de justiça auxiliar do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude (Caopij) do MPCE, elenca três principais pilares para esse combate à adultização:
- Criança não assume responsabilidade
- Criança não trabalha
- Criança não namora
Ele exemplifica casos como um jogador mirim de futebol, que é pressionado a assinar contratos e vínculos com clubes: “Eles não estão preparados para assumir esses tipos de responsabilidade, é completamente proibido”.
“Mas a pior das formas de adultização se chama casamento infantil. A criança, principalmente as meninas, tem seu corpo explorado sexualmente, muitas vezes por um adulto abusador. Elas têm que exercer o trabalho de mãe, que é um trabalho doméstico muito pesado, não é para a vida da adolescente, ela deixa de estudar para exercer o trabalho de mãe. E o adolescente também assume papel de pai. O que acontece com Ministério Público nesse aspecto? Estamos de olhos mais abertos e a gente ganha maiores fatores de proteção", avalia o promotor.
A lei da adultização criou um Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) digital para proteger menores de idade de riscos em sites, aplicativos, jogos virtuais e redes sociais. O dispositivo legal ainda prevê regras para supervisão dos pais e exige mecanismos mais confiáveis para verificação de idade de usuários nas redes, além de obrigar plataformas digitais a tomar medidas mais enérgicas para prevenir a exploração de crianças.
Como forma de proteger a infância desses jovens, o Ministério Público tem buscado fortalecer os Comitês da 1ª Infância em todos os 184 municípios cearenses. “Precisamos garantir os direitos dessas crianças, para que elas tenham suas vidas e direitos bem preservados e bem cuidados nessa primeira fase. Uma criança saudável se torna um adulto saudável”, pondera o promotor Dairton.
Em relação ao cuidado maior com a exploração da imagem, o promotor de Justiça pontua que o ECA Digital vai extinguir o chamado “período probatório”, onde o MPCE tinha de provar que aconteceu algum dano. Foi o caso do influenciador digital Hytalo Santos e de seu marido, o cantor Euro, presos após o vídeo da adultização em agosto, mas eram investigados desde dezembro de 2024 pelo Ministério Público do Estado da Paraíba (MPCE), que precisou provar as intenções criminosas. "Teremos mais respaldo legal para agir”, define Dairton Oliveira.
Talentos da periferia
Lucas Cauã começou na internet há cerca de 2 anos, quando explodiram as chamadas "turmas" do TikTok, do Instagram e do Kwai, onde influenciadores mais velhos agem como produtores de grupos de adolescentes que querem se tornar criadores de conteúdo. Eles gravam geralmente as chamadas novelinhas de humor, e trazem muita regionalidade e até descobrem talentos nas periferias. Uma das jovens que participa dos vídeos conseguiu um contrato de trabalho por conta da visibilidade gerada, e eles gravaram uma música com a cantora de forró Danieze Santiago.
A Turma das Debochadas é um dos nichos que fizeram o grupo de Lucas, chamado de Kaka, viralizar. Elas são, em sua maioria, jovens negras da periferia que buscam oportunidades e conseguem imprimir suas personalidades fortes por meio dos conteúdos. Além disso, o deboche, definido no dicionário como “zombaria insistente, escárnio, zoação”, ganha outra configuração nas comunidades, e se torna uma arma contra o preconceito e uma ferramenta para os jovens se destacarem com o humor.
A gente não quer parar de gravar com as crianças. Queremos continuar trabalhando com esses jovens, porque eu acho que podemos mandar uma lição para eles e para a sociedade. Então, a gente quer continuar gravando, só que da forma certa. Eles estudam, eles vão para escola, eles moram com os pais deles
Uma crítica constante no seio da adultização é a sexualização de jovens, principalmente meninas, por meio de mais roupas reveladoras, itens que podiam ser encontrados nos vídeos da Turma. Entretanto, Lucas relata que é uma característica das jovens de bairros mais pobres.
“Somente gravamos com as roupas que elas já vestiam em casa. Elas usavam roupas que são mais acessíveis e mais fáceis de encontrar nas feiras, por exemplo. Nós deixamos elas se vestiram da forma que elas quiserem, é muito da realidade da comunidade, sem nenhum tipo de maldade”, conta.
No futuro, o criador de conteúdo comenta quer seguirá com vídeos bem-humorados, mas pensa em também incorporar pautas sociais nos roteiros como saúde mental, por exemplo: “Eu quero usar a minha rede de forma positiva, para passar mensagens daqui de Fortaleza”.
Como denunciar violações de direitos de crianças e adolescentes?
Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude (Caopij)
- Endereço: Rua Maria Alice Ferraz, 120, Luciano Cavalcante – Fortaleza/CE
- CEP: 60.811-295
- Telefones: (85) 98563-4049 (ligação e whatsapp)
- E-mail: caopij@mpce.mp.br
- Horário de funcionamento: 8h às 14h.
Denuncie: Denúncia de Violência e Abuso Sexual Contra Criança e Adolescente – Disque 100.