Do campo à mesa, agricultura familiar abastece quase 70% dos cearenses e é aliada no combate à fome

Milho, feijão, fava, mandioca, macaxeira e batata. Produtos básicos do cardápio das famílias cearenses são cultivados na zona rural do interior do Estado e, carregados em caminhões, percorrem longos quilômetros até chegar aos principais centros urbanos de comercialização. Independentemente da forma de preparo, são promessas para curar a fome, problema permanente que aperta a barriga e traz angústia à cabeça.

Em 2023, moradores de 1,1 milhão de lares cearenses tinham qualidade e quantidade de alimentos comprometidas ou enfrentavam a fome, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Grande parte tinha renda domiciliar per capita de até meio salário mínimo, advinda de trabalhos geralmente informais ou autônomos.

Nos últimos meses, o Diário do Nordeste visitou quatro cidades do Estado para conhecer o trabalho de profissionais envolvidos no combate à fome e a recepção dos beneficiários. Assim, servimos o especial “Ceará: Comer e Curar”, que mostra os sabores e desafios do combate à insegurança alimentar e seus impactos em áreas como saúde, economia e educação.

A pesquisa do IBGE, de nível nacional, escancarou a necessidade de formulação de políticas públicas de Segurança Alimentar que levem em conta condições socioeconômicas da população, como renda, emprego, endividamento, escolaridade, composição das famílias e acesso a benefícios sociais.

Uma das respostas ao problema está no campo cearense, onde há mais de 394 mil estabelecimentos rurais, segundo o último Censo Agropecuário do IBGE. Destes, quase 298 mil - ou 75% - são classificados como de agricultura familiar, modalidade desenvolvida por grupos de famílias em pequenas propriedades rurais. Este é o 3º maior número do país, atrás apenas da Bahia e de Minas Gerais.

70%
dos alimentos vendidos para fora ou consumidos no Estado são produzidos pela agricultura familiar, conforme estimativa da Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA).

O secretário de Política Agrícola da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Ceará (Fetraece), Joathan Magalhães, explica que o Estado tem culturas tradicionais de sequeiro (onde há menos chuvas), como milho, feijão e fava; e de áreas irrigantes, que produzem verduras, maracujá, macaxeira e mandioca.

No entanto, mesmo com toda a disponibilidade interna desses cultivos, os produtores familiares enfrentam a concorrência de grandes empresas. “Quando não compram daqui, tem cargas fechadas de outros Estados. Muitos pensam que, se é pra entregar de graça, é melhor ficar com o produto. Não tem um preço justo. E não é fácil produzir, muitos ainda produzem à base da enxada. Em algumas situações, essa não valorização incomoda”, indica.

Um desses produtores autônomos é o agricultor Francisco Gumercindo, 65, que planta no quintal de casa, em Morada Nova, no Vale do Jaguaribe. Todos os anos, ele semeia milho, mandioca, feijão e sorgo para o gado comer. Cultivar requer paciência: a semente plantada em meados de fevereiro só vai frutificar em maio. O que ele apura é revertido para a família e parte da vizinhança. “Também fica pro gado, galinha, porcos e ovelhas. Vender pra depois precisar comprar não adianta”, compreende o veterano.

Outros gargalos, aponta Joathan, são a assistência técnica insuficiente e a falta de implementos tecnológicos, “para ter novos mecanismos de produção e desenvolvimento”. “Falta incentivo para ter desenvolvimento no campo porque tudo isso tem custos, os produtores precisam de subsídios e de valorização do produto”.

A titular da Coordenadoria de Desenvolvimento da Agricultura Familiar (Codaf) da SDA, Rocicleide Silva, reconhece as lacunas e afirma que o Governo do Estado vem buscando recursos para qualificar o setor. Neste ano, no dia 19 de março - tradicional Dia de São José -, foi lançado investimento de R$1,5 bilhão para o desenvolvimento rural, incluindo R$73 milhões para a modernização da atividade agrícola.

Outras mudanças em curso incluem a melhoria do processo de tecnologização do campo, “com qualidade e cuidado”, além de estudos para o manejo sem o uso de agrotóxicos. “Estamos introduzindo microtratores ou máquinas pequenas que possam ajudar e diminuir o esforço do trabalho no campo. A essa altura do campeonato, não podemos mais ter uma agricultura tão rudimentar, só de enxada e foice”, defende.

Só em 2023, segundo a Secretaria, foram executados R$173,4 milhões, beneficiando quase 668 mil pessoas. Ao todo, o Garantia Safra recebeu o maior montante: R$116 milhões; em seguida, veio o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) Leite, com R$33,1 milhões, e o Projeto Hora de Plantar, com R$24,2 milhões. Veja abaixo o que cada iniciativa desenvolve: 

Incentivo à compra

Na formatação do Programa Ceará Sem Fome, produtores familiares também foram consultados sobre a forma como poderiam contribuir. Segundo Lia de Freitas, primeira-dama e presidente do Comitê Intersetorial da iniciativa, uma queixa comum é a de que eles têm terras, mas não adubo, semente ou água. “Me dê condições que eu produzo”, escutou.

Por isso, afirma, a agricultura familiar é prioridade na aquisição de alimentos para uso em Cozinhas Solidárias. As Unidades Gerenciadoras (UGs) precisam, na prestação de contas, comprovar que estão comprando produtos dessa modalidade. “Tem entidade que compra 100% do que precisa de verdura e legume”, ilustra. 

A Lei Nº18.312/2023, que criou o Programa Ceará Sem Fome, menciona que os alimentos distribuídos devem ser, prioritariamente, oriundos da agricultura familiar, especialmente das cooperativas, das associações e dos grupos de produções agroecológicas, a fim de garantir a inclusão produtiva dos grupos organizados, pescadores artesanais e unidades indígenas e quilombolas.

Rocicleide Silva complementa que, na prática, a SDA funciona como ponte entre as UGs e os produtores. “Temos o programa Mandala, por exemplo, que produz legumes, frutas, verduras, aves e peixes por sua metodologia. Temos mais de 400 núcleos implantados no Estado. Pegamos a lista de beneficiários desse Programa e entregamos às UGs, por município, por comunidade, para que possam fazer sua negociação de compra”.

A coordenadora ressalta que, nos últimos 20 anos, o Estado vem diversificando o rol do que é produzido. Hoje, chegam à mesa dos cearenses, por exemplo, bananas, castanhas, berinjelas, hortaliças, melões, tomates e cheiro verde. Também há o fornecimento de queijo coalho, ovos, frangos e suínos.

Joathan Magalhães, da Fetraece, defende que as parcerias sejam cada vez mais ampliadas com cooperativas e associações para incrementar o atendimento ao Ceará Sem Fome. “De barriga seca, a gente não consegue fazer muita coisa não. Não há força, não há disposição, não há coragem pra trabalhar”, sustenta.