De violência à falta de pagamentos: por que mais de 800 recenseadores desistiram de trabalhar no CE

Cronograma da maior pesquisa do País foi afetado pelo desligamento massivo de contratados temporários

Atrasado em dois anos por causa da pandemia e de problemas orçamentários, o Censo 2022 começou no mês de agosto em todo o Brasil. No Ceará, o levantamento demográfico encontra outro problema: a desistência de recenseadores, responsáveis por realizar as entrevistas em campo, que pedem demissão do cargo, que é temporário.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística no Ceará (IBGE-CE), realizador do Censo, mais de 859 profissionais desistiram do trabalho no Estado. Até ontem (19), ficou aberto um processo seletivo com 644 vagas para a função.

7.348 
recenseadores foram treinados pelo IBGE-CE para percorrer mais de 3 milhões de domicílios nos 184 municípios cearenses. Só em Fortaleza, foram 2.269.

O próprio IBGE reconhece que “o trabalho nas grandes cidades é bem mais complicado que no interior”, apontando fatores como:

  • insegurança por conta da criminalidade
  • hostilidade por parte de alguns moradores
  • dificuldade de acesso aos condomínios
  • zonas dominadas pelas facções

Recenseadores que pediram demissão do cargo ouvidos pelo Diário do Nordeste, na condição de anonimato, revelam uma série de problemas relacionados a esses e outros casos.

Um deles foi um jovem de Fortaleza que até comemorou a aprovação na seleção, mas se deparou com uma realidade bem diferente. No saldo total, trabalhou menos de um mês.

“Sou do José Walter e fui colocado no Passaré. Tinha que gastar 4 passagens por dia porque não tinha como ir a pé e ainda voltava pra casa pra almoçar, porque não tinha dinheiro pra comer no bairro e o IBGE não tinha dado”, relata.

Além disso, considerava o trabalho “muito perigoso” porque seu setor incluía a comunidade da Babilônia. “Tinha medo de ser assaltado. No último dia que fui teve até tiroteio, então não ia arriscar minha vida”, relata.

Ele também comenta que a divulgação do Censo 2022 não chegou à população de forma eficaz, recebendo muitas recusas. “Como o recenseador ganha por produção, eu praticamente não estava trabalhando”, explica ele, revelando que as pessoas não aceitavam recebê-lo.

Outra recenseadora entrevistada relatou o desconhecimento como principal motivo para deixar o trabalho, também desempenhado por menos de um mês, em Fortaleza, embora seu setor não fosse muito grande.

“Tinha muita recusa do pessoal, olhares desconfiados, falta de educação. Poucas pessoas responderam direito. Fiquei até com um pouco de crise de ansiedade por conta disso, preocupada se ia conseguir fechar meu setor”, lamenta.

A mulher também foi recenseadora no ano de 2010 e se assustou com a realidade da nova edição. “Claro que tinha pessoas que não queriam responder, mas eram minoria. Nesse, estava bastante animada pra começar, mas depois desanimei”, diz.

Francisco Lopes, superintendente do IBGE-CE, afirmou em entrevista ao Diário do Nordeste que a desistência de recenseadores é um fenômeno de nível nacional, tendo contribuído para a prorrogação da pesquisa: antes prevista para acabar em 30 de outubro, seguirá até 30 de novembro.

Segundo o gestor, o choque de realidade entre o treinamento e o trabalho em campo, às vezes sem nenhuma receptividade, desestimula a categoria.

“Ele sai de rua em rua, de casa em casa, de apartamento em apartamento. Esse contato é com pessoas de diferentes níveis e que atendem de diferentes maneiras. Tem aquelas que atendem de uma forma inadequada, e às vezes até dizem algumas coisas com o recenseador”, relata.

Além disso, insegurança e intimidação por criminosos em determinadas áreas e a rotina extenuante exigida pelo trabalho são outros fatores indicados pelo superintendente para os pedidos de desligamento.

Falta de pagamento

A demora na remuneração também é ponto abordado pelos profissionais ouvidos pela reportagem e por relatos de recenseadores Brasil adentro, nas redes sociais, assim como o baixo valor pago pelo trabalho.

“Achei que algumas informações não foram muito claras. Meu setor só foi liberado para o pagamento há uns sete dias, então tô esperando receber”, declarou a recenseadora de Fortaleza.

“Trabalhei em agosto e até agora (terceira semana de outubro) nada. Como fiz 50% do setor, outra pessoa pegou. Ele terminou em menos de 12 dias e até hoje também não recebeu”, conta o jovem do José Walter.

Conforme o superintendente Francisco Lopes, cada setor precisa ser supervisionado após a finalização, em processo que dura cerca de 10 dias. O intuito é verificar se a coleta foi feita corretamente. Quando há inconsistências, é necessário retornar ao campo para fazer as devidas atualizações. 

“O recenseador recebe quando o setor é integralmente concluído. Já pagamos 8.481 setores no Ceará, ou seja, estamos pagando à proporção que o trabalho fica totalmente liberado”, ressalta. 

Lopes comenta que a gestão do Censo está fazendo esforços para agilizar os pagamentos e até melhorar as taxas, estimulando a produtividade dos contratados para, assim, acelerar o trabalho de conclusão da coleta.

Roubo de equipamentos

De acordo com um ex-recenseador de Fortaleza, alguns colegas dele tiveram o Dispositivo Móvel de Coleta (DMC) levados por criminosos. O aparelho é utilizado para colher as informações da pesquisa. Ao todo, segundo o IBGE-CE, 27 DMCs já precisaram ser repostos no Estado.

O superintendente Francisco Lopes recomenda que, sempre que forem iniciar um setor, os recenseadores entrem em contato com líderes comunitários para serem acolhidos e pedirem orientações sobre deslocamentos dentro do bairro.

Além disso, relata que as forças de segurança são informadas sobre a atuação dos profissionais, para que fiquem atentos à área. Ainda assim, caso o recenseador seja assaltado, a orientação é fazer um boletim de ocorrência (BO) tão logo for possível. 

Lopes reforça que o DMC não funciona como smartphone ou celular. Ao ser roubado ou furtado, o aparelho é apagado internamente e se torna inutilizável. Contudo, os dados coletados até aquele momento são salvos no sistema do IBGE.

Processo seletivo

O último processo seletivo abriu 644 vagas para recenseadores no Ceará, distribuídas em 34 municípios e em 14 áreas da capital Fortaleza. Para concorrer ao cargo, é necessário ter concluído o ensino fundamental. 

Os interessados nas vagas devem comparecer aos postos de coleta do Censo em cada município portando documento com foto. Não é cobrada taxa de inscrição.

O trabalho do recenseador é temporário, e seu contrato poderá se estender até o final da coleta domiciliar. A remuneração vai de acordo com a produção, e a carga horária mínima recomendada é de 25 horas semanais. 

Os candidatos selecionados passam por treinamento antes de serem contratados para o trabalho de campo. A expectativa é que sejam contados mais de 9 milhões de habitantes no estado.

Como reconhecer um recenseador

Para evitar fraudes, os entrevistadores sempre estão identificados por crachá, com nome e matrícula. A identidade dos profissionais podem ser verificadas por meio da Central de Atendimento do IBGE ou de um formulário no site.

Em algumas localidades, os entrevistadores poderão usar colete e crachá com a identidade visual do IBGE. Caso haja falta de informação, o público pode solicitá-la ao entrevistador.