Noite de domingo. Igreja limpa, altar arrumado, famílias se alocando nos bancos para iniciar a semana ouvindo palavras de fé. A pregação inicia. Entre versículos da Bíblia, surge a descrição de um dos candidatos à presidência do Brasil. Tem início, agora, a campanha.
Espaços que antes eram sinônimos de paz, as igrejas estão hoje permeadas pelos efeitos da polarização política vivida no País. “Era pra ser um refúgio de tranquilidade, não atrito”, desabafa A. Martins, 40, que deixou de ir ao templo evangélico que frequentava.
Além dele, o Diário do Nordeste conversou com outros fiéis que se afastaram dos espaços religiosos, neste ano, devido ao acirramento das questões políticas. E nenhum deles pretende voltar.
“Estão proliferando ódio”
O motorista de aplicativo A. Martins, que pediu para ser identificado apenas desta forma, participava das atividades de uma igreja evangélica de Fortaleza há cerca de 5 anos. Em 2022, porém, o bem-estar que sentia deu lugar a incômodo. A paz virou guerra.
“Lamento, sinto muita falta, eu gostava do ambiente. Mas a igreja é pra ser um refúgio de tranquilidade, de paz, local pra orar, agradecer. A gente procura calmaria, não um local pra discussão, atrito. De forma alguma concordo com isso”, declara.
A pastora e o presbítero começaram a falar mal de um candidato. Eu disse que não concordava, porque eles têm influência sobre os demais membros da igreja, as pessoas os escutam. Veio uma membra e disse que tinha que falar mesmo. Não discuti.
O silêncio logo se tornou ausência. Martins passou a “não se sentir bem” com a convivência presencial e online com os membros da igreja, e decidiu sair. “As pessoas estão proliferando ódio, falando mal do outro. Isso não é bom pra ninguém”, desabafa.
“É muito triste estar dentro da igreja ver que as pessoas esqueceram do propósito da fé, da religião, de focar no real – que é amar o próximo. Passam por cima de tudo em prol de algo que defendem e acreditam”, lamenta Martins, afirmando que o sentimento é compartilhado com outros fiéis.
“Outras pessoas têm o mesmo pensamento que eu, mas com receio de bater de frente, se retraem. Eu sou muito seguro do que eu decido: não pretendo voltar para esta igreja. É um ambiente que eu sei que não sou bem-vindo”, sentencia.
“Agora assisto à missa na TV”
O vínculo da professora Maria Santos, 38, com a igreja era ainda mais antigo. Há mais de uma década, ela congregava em instituições evangélicas, ciclo que se encerrou já em 2018, após as eleições presidenciais daquele ano.
A cearense assume que o desgaste era tanto que “não conseguia mais escutar a palavra de Deus”. “Passei a ir pra igreja só pra escutar os louvores, me desligava quando o pastor começava a falar, porque era só política. Aquilo me incomodava muito”, relembra Maria.
Tentei voltar pra igreja neste ano, tanto evangélica como católica, mas percebi que não consigo mais. Os próprios membros ficam discutindo entre si, não aguentei.
A fé, então, ficou sem teto. Agora, diante da “necessidade pessoal de assistir a alguma pregação”, de vivenciar orações mediadas, a professora recorre à televisão. Mesmo evangélica, o compromisso diário com Deus é cumprido por meio da missa.
“O que tô fazendo todos os dias, agora, é colocar a missa do Padre Marcelo Rossi na TV, às 6h. É ótima. Mas à igreja já não consigo mais ir. Até nos grupos (online) as irmãs ficavam falando”, diz.
Questionada se pretende voltar aos templos religiosos após as eleições, Maria hesita. “Acredito que não, mas não dá pra dizer. Hoje tô bem assim, mas a gente nunca sabe o dia de amanhã.”
“Se eu fosse mais fraco, já teria saído”
As memórias do professor aposentado Cícero Calou, 66, são permeadas, “desde os tempos de garoto”, pelas vivências na igreja. A família católica tinha no templo não só um espaço de professar a fé, mas de socializar. “A igreja era uma opção de lazer”, ele relembra.
A relação, então, se fortaleceu de geração em geração. Hoje, ele, a esposa e os filhos são membros ativos de uma das igrejas católicas mais tradicionais de Fortaleza – espaço que Cícero integra desde 2004, mas do qual já pensou em se afastar por atritos políticos com outros fiéis.
Se eu fosse mais fraco, eu já teria saído da igreja. Deu vontade de me afastar, mas pensei que se fizesse isso estaria me rendendo. Vou enfrentar, mas não discutindo – vou silenciar. Não posso ficar sem minha comunhão.
As divergências entre a posição política de Cícero e de outros membros da igreja, neste período eleitoral, levaram à exclusão do aposentado de um grupo de oração que, segundo ele, ajudou a fundar.
“Depois que fui retirado, recebi muito apoio de colegas, mas no privado – não se pronunciaram nos grupos. Tem muitos fiéis intocados, por receio. Um colega meu, inclusive, se afastou do terço, ele não fala mais com ninguém da igreja”, lamenta.
Na visão do professor, que é doutor em Políticas Públicas, “o grande problema é que a própria igreja não abre o debate”, e, assim, não incentiva discussões que sejam saudáveis, respeitosas e “em acordo com o evangelho”.
"O debate tem que ser decente, ouvindo o evangelho, seguindo os princípios da palavra de Deus. Eles têm um sentimento de fé em Cristo, mas não têm uma reação pra defender o que Jesus como modelo defendeu", opina.
“Há usos políticos da religião”, aponta especialista
A relação entre religião e política (ou Igreja e Estado) é histórica na sociedade, como observa George Paulino, professor de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador do Laboratório de Antropologia e Imagem (LAI/UFC).
Pesquisador de antropologia da religião, Paulino pontua que “a evolução da modernidade institui a separação dessas instâncias”, mas que “a sociedade não desencantou, continua povoada por mitos e ritos”.
Mas no contexto de uma sociedade que preserva o Estado Democrático de Direito, o espaço das religiões é plural. Mas é onde se desenrolam disputas narrativas acerca do ideal de salvação e prosperidade terrena. Então, há usos políticos da religião.
O professor avalia que quando lideranças religiosas pressionam os membros de igrejas sobre o voto, parte dessa comunidade “passa a valorizar sua autonomia de pensamento e entendimento, e se afasta”.
Para Paulino, “a violência que permeia hoje o processo eleitoral prejudica o desenvolvimento do real debate sobre as questões sociais mais gritantes do País”, além de gerar rupturas sociais importantes e de sequelas definitivas.
“Essa ruptura com o espaço físico onde se ritualiza a fé, as igrejas, pode representar a quebra de laços sociais importantes na esfera da ‘vizinhança’, da solidariedade – que precisa ser resgatada após as eleições”, finaliza.