Lupicínio Rodrigues pode ser reconhecido como um dos primeiros brasileiros a disputar Oscar 80 anos após injustiça
Cantor teve música utilizada em longa indicado ao Oscar, mas sem créditos, no mesmo ano em que Ary Barroso também conquistou menção pioneira no prêmio

As três indicações de “Ainda Estou Aqui” ao Oscar de 2025 são históricas, decerto, mas vêm na esteira de uma trajetória que começou há exatos 80 anos, quando o Brasil apareceu pela primeira vez no prêmio — e também, é possível dizer, foi pela primeira vez injustiçado no evento.
No ano de 1945, dois artistas da música poderiam ter dividido o título de primeiros brasileiros indicados ao Oscar da história. No entanto, somente o mineiro Ary Barroso (1903-1964) recebeu indicação oficial na categoria de Melhor Canção Original — por “Rio de Janeiro”, da comédia musical “Brasil” (1944) —, enquanto o gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914-1074), por falta de crédito na trilha do musical “Dançarina Loura” (1944), não foi considerado.
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"Se Acaso Você Chegasse" e política da boa vizinhança
A história foi revelada pela primeira vez no documentário “Lupicínio Rodrigues - Confissões de um Sofredor” (2022), dirigido pelo cineasta Alfredo Manevy. Com a repercussão da obra — disponível na Prime Video e na Claro TV —, a família do artista passou a lutar pelo reconhecimento do crédito no longa dos EUA e no Oscar.
“Na pesquisa do documentário, nós descobrimos que o filme ‘Lady, Let's Dance’ (título original de ‘Dançarina Loura’) tinha um trecho de um minuto e meio da música ‘Se Acaso Você Chegasse’”, contextualiza Manevy em entrevista ao Verso.
O longa estadunidense recebeu duas indicações ao Oscar em 1945: Melhor Trilha de Filme Musical, para Edward Kay, e Melhor Canção, para a música “Silver Shadows And Golden Dreams", creditada a Lew Pollack e Charles Newman. Ela, no entanto, é uma versão da canção de Lupicínio, que não foi creditado ou consultado para o uso.
“Se Acaso Você Chegasse”, explica o cineasta, foi um dos primeiros sucessos do gaúcho, reconhecida na voz de Cyro Monteiro (1913-1973) nos anos 1930 e, já na década de 1960, responsável pelo estrelato de Elza Soares (1930-2022).
Conforme a pesquisa da equipe do documentário sobre Lupicínio, a música ficou conhecida fora do Brasil a partir de uma ação da política de boa vizinhança entre os governos de Getúlio Vargas (presidente do País entre 1930 e 1945) e Franklin Roosevelt (presidente dos EUA entre 1933 e 1945).
“Darcy Vargas (esposa de Getúlio e 1ª dama do País à época) tinha uma ação de promoção da música brasileira e ‘Se Acaso Você Chegasse’ foi incluída num pacote de dezenas de músicas que foram para uma feira em Chicago. Possivelmente aí, Edward Kay, autor da trilha (de ‘Dançarina Loura’), tomou conhecimento”, segue Manevy.
Luta por reconhecimento busca reparar injustiça
Na avaliação do diretor, o episódio é “impactante”. “Lupicínio não foi creditado, não recebeu nenhum dinheiro e isso certamente teria mudado a sua trajetória, pelo menos financeira e de reconhecimento internacional”, considera. Manevy lembra que a indicação conquistada por Ary Barroso na mesma edição, por exemplo, teve “impacto enorme” para o artista.
A partir da revelação do documentário, o episódio ficou conhecido e chegou ao advogado norte-americano Miles Cooley, que atua com nomes como Rihanna e é casado com uma brasileira. O profissional passou, então, a atuar pela causa.
“Miles Cooley entrou com uma ação junto à Academia do Oscar pedindo esse reconhecimento e ela disse que reconheceria se o crédito fosse dado pelo estúdio. Então, ele entrou com uma ação junto à MGM, detentora dos direitos, para pedir esse crédito e essa batalha está se dando nesse momento entre o advogado e o estúdio”
A “não-indicação” de Lupicínio para o Oscar é definida como “uma grande injustiça” por Manevy. O fato, porém, espelha uma série de apagamentos enfrentados pelo artista, inclusive no País de origem.
Memória de Lupicínio "não é devidamente reconhecida no Brasil"
“Pode-se dizer que muito da sua memória não é devidamente reconhecida no Brasil. Apesar do seu cancioneiro fazer parte da memória afetiva, muita gente acha que Lupicínio nasceu no Rio de Janeiro. Não se sabe que ele é gaúcho porque a história de um sambista numa região tida como com outra cultura gera um apagamento”, argumenta.
O cineasta ressalta, por exemplo, que Lupicínio enfrentou um episódio de racismo em um bar em Porto Alegre, cidade onde nasceu, levando-o a ser uma das primeiras pessoas a se valer da Lei Afonso Arinos, pioneira no combate à discriminação racial no Brasil e promulgada por Getúlio Vargas em 1951.
“Isso mostra que houve outras tentativas de apagamento. Há uma passagem de Lupicínio como cantor, importantíssima, que também ainda não tem o devido reconhecimento. Nós acreditamos que o filme tem contribuído para reverter esse processo”, aponta.
A luta pelo reconhecimento do crédito e da indicação de Lupicínio, definido como “grande compositor” e dono de “sofisticada poesia e melodia” por Manevy, se une nesse processo de valorização do artista.
“Quando Hollywood diz que o Brasil ou outros países pirateiam seus filmes, eles têm razão, mas quando é o contrário, por que não reconhecer? Porque isso foi pirataria. Se Hollywood for tão rigorosa consigo mesma quanto é com outros países, deveria imediatamente reconhecer Lupicínio Rodrigues”
De Ary e Lupicínio a Fernanda Torres, cultura é "maior ativo" do Brasil
A indicação de Ary Barroso e a não-indicação de Lupicínio Rodrigues ao Oscar ocorreram há exatos 80 anos. Ao longo dessas décadas, o Brasil conquistou outras menções no prêmio, mas ainda nenhuma vitória.
Em 2025, há a expectativa por um triunfo inédito com o longa “Ainda Estou Aqui”, indicado a Melhor Filme e Melhor Filme Internacional, e Fernanda Torres, indicada a Melhor Atriz.
“O reconhecimento do filme do Walter Salles é o reconhecimento dos talentos brasileiros, da capacidade de planejamento de um filme e da sua capacidade de emocionar e se transformar num fato social e cultural importantíssimo para o Brasil”, reflete o diretor.
Na avaliação dele, a cultura é o “maior ativo” do País. “Infelizmente, o Estado e a sociedade brasileira ainda não reconhecem plenamente o potencial geopolítico, simbólico, diplomático da cultura”, aponta Manevy.
“O Brasil tem um potencial enorme, junto com a Coreia do Sul e outros países emergentes, de ser uma voz do Sul Global, mas é preciso que essa percepção seja tratada como assunto de Estado para que efetivamente todo esse potencial se traduza. Por exemplo, até agora o Brasil não regulou o streaming, isso mostra o descaso que tem com o próprio audiovisual”, pontua.