Povos indígenas têm atendimento médico e alimentação precários

No Ceará, são mais de 35 mil povos indígenas em 104 aldeias. Para atender todo esse contingente, são apenas 24 Unidades Básicas de Saúde Indígenas, 5 profissionais do programa Mais Médicos e menos de 300 profissionais ligados ao Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira

Escrito por Redação , regiao@svm.com.br
Legenda: A insegurança alimentar é, ao lado da saúde, a principal queixa dos índios
Foto: Fotos: Iago Barreto

A pandemia do novo coronavírus evidenciou negligências históricas aos povos indígenas do Ceará, presentes em 20 municípios, segundo a Secretaria de Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS) do Estado. Atendimento médico precário, dificuldade no acesso à comida e água são gargalos enfrentados por uma população que chega a 35,7 mil pessoas.

Para Neto Pitaguary, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena do Estado, a cobertura médica é o principal desafio. Ele avalia que existe uma limitação na força de trabalho que ficou ainda mais evidente com a pandemia. "A gente tem uma fragilidade. Hoje, o que temos não é suficiente para atender a população. A gente precisaria de mais profissionais", ressalta.

O Ceará conta com apenas cinco profissionais do Programa Mais Médicos (PMM) que atuam no Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) local, unidade gestora do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS). Dos estados do Nordeste com Distritos, é o que tem o menor número de profissionais do PMM, ficando atrás do Maranhão (19), Bahia (18), Pernambuco (13), Paraíba (8), Alagoas e Sergipe (7). Piauí e Rio Grande do Norte não possuem DSEIs, segundo o Mapa de Atuação do Programa Mais Médicos.

Unidades Básicas

Conforme dados do Dsei Ceará, o Estado possui 26 Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI) e nove pólos bases de saúde. Esse reduzido número é responsável pela atenção primária de 104 aldeias cearenses. "Com a pandemia, cada pólo base ficou responsável por criar o plano de contingência com base nas orientações da OMS, do Estado e da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena)", explica Neto Pitaguary. Além disso, o Ceará tem duas Coordenações Técnicas Locais, localizadas nos municípios de Itarema e Crateús.

Weibe Tapeba, advogado e liderança indígena do Povo Tabepa, em Caucaia, avalia que esses números - de médicos e UBSIs - é insuficiente para preencher a demanda no Estado. "Aqui, na Lagoa dos Tapeba, a UBSI atende a quatro comunidades. O único médico que tínhamos do Mais Médicos foi embora", lamenta. "Além da contratação de profissionais, é necessário termos a construção de mais unidades de atendimento, assim como a ampliação da frota de veículos para as equipes e para os casos de urgência nas comunidades e a valorização da medicina tradicional".

A maior parte dos profissionais da atenção básica indígena no Ceará são conveniados, ligados ao Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP). Até abril de 2019, o Instituto operava com 292 profissionais. A reportagem tentou contato com o IMIP e Sesai para saber se houve atualização do número. O Instituto informou, em nota, que qualquer informação sobre o assunto deve ser solicitada ao setor de comunicação da Sesai. O órgão, por sua vez, não respondeu aos questionamentos.

Para Weibe Tapeba, a mudança de direção na Secretaria Especial de Saúde Indígena, em Brasília, realizada em 2019, gerou alteração no critério de definição das coordenações estaduais e dificultou a atuação nos municípios.

"Acabou gerando, ao meu ver, uma certa descontinuidade nos serviços e prejudicando algumas áreas", explica. "Por exemplo, há uma decisão de não contratar mais profissionais. Isso prejudica regiões em que a demanda está sufocada. Assim como não há nenhuma perspectiva de construções de UBSIs novas, sendo que a maioria dos locais onde os atendimentos são realizados é adaptada". Pitaguary concorda com a avaliação de Weibe Tapeba e reafirma que cinco profissionais do Mais Médicos, cerca de 300 ligados ao Imip e apenas 26 UBSIs são insuficientes para um contingente tão grande de indígenas no Ceará.

Realidade preocupante

Na comunidade de Retiro, zona rural de Iguatu, onde vive o povo Kariri-Quixelô, as 15 famílias residentes no local não contam com posto de saúde ou UBS. Segundo o cacique Eduardo Kariri-Quixelô, os cerca de 50 moradores são atendidos por um médico, cedido pelo Município, que se desloca ao local uma vez por mês. "Infelizmente, não estamos recebendo mais nem essa visita médica. Está com mais de dois meses que o povo não é atendido", relata.

Sem acesso aos serviços básicos de saúde, a comunidade era obrigada a se deslocar ao Centro da cidade de Iguatu, a cerca de 19 km de distância. Porém, com as recomendações da OMS de evitar sair de casa, esse deslocamento também ficou impedido.

"Estamos todos apavorados. Não estamos tendo acesso à cidade e nem com ninguém de fora. A Prefeitura também não tem nenhuma comunicação conosco", lamenta o cacique Eduardo.

"Começou a vacina da gripe (H1N1) e nem disso fomos avisados", conta. A reportagem entrou em contato com a Secretaria da Saúde de Iguatu, mas não teve os questionamentos respondidos até o fechamento desta edição.

Povo Kariri

Na comunidade do Poço Dantas, no município de Crato, na região do Cariri, a dificuldade em conseguir atendimento médico se agravou nos últimos dias. Normalmente, a aldeia recorre ao posto de saúde em Monte Alverne, distrito vizinho. Vanda Lúcia Batista Kariri, presidente da Associação dos Índios Kariris, explica que esse acesso ficou limitado com a pandemia. "Agora está complicado porque temos pessoas idosas", pontua. Na comunidade, aproximadamente 60 famílias dependem do deslocamento para conseguir atendimento médico.

Os problemas, no entanto, não se restringem à área da saúde. Segundo a representante, "até o mês passado" a comunidade não possuía sequer acesso à água. "Conseguimos com a Prefeitura depois de uma luta de quase 10 anos", lembra. "Nem a Funai, nem a Secretaria de Saúde Indígena nos deu apoio. Estamos em situação de muita vulnerabilidade". Vanda Batista disse ainda que a comunidade está preparando um relatório para encaminhar à Funai com as principais demandas, embora já tenha sido enviado um ofício cobrando "uma visita na comunidade".

Joedson Nascimento, mestrando em Geografia que pesquisa o processo de identificação, autoafirmação e organização política dos Kariris, confirma que "não existe nenhum equipamento de saúde, nem federal, nem municipal", no Sítio Poço Dantas. "Outras reivindicações são a construção de uma escola indígena e de um posto de saúde na comunidade", destaca, apontando que a saúde é muito fragilizada porque não tem serviços que atendam à demanda da comunidade.

Segundo o secretário da Saúde de Crato, André Barreto, o Município apresentou o Plano de Contingência ao Ministério Público, mas confessou não ser nada específico voltado às comunidades indígenas e quilombolas. "A Comunidade Kariri, no distrito de Monte Alverne, é muito integrada à sociedade. A dificuldade, neste momento, se dá devido às chuvas que castigaram bastante as estradas naquela região", justificou o secretário. Este é mais um grave problema. Isto porque a Unidade Básica de Saúde de Monte Alverne é a responsável pelo atendimento ao Poço Dantas. Sem acesso às estradas, não há atendimento médico.

O Diário do Nordeste questionou à Secretaria Especial de Saúde Indígena - que desde 2008 passou a gerir as questões sanitárias indígenas - sobre o baixo quantitativo de médicos dedicados ao atendimentos das tribos. Assim como também questionou o órgão se há previsão para contratação de mais profissionais. No entanto, as demandas não foram respondidas.

Alimentação

Além de cobrar mais atenção ao serviço de saúde, alguns povos relatam estar encontrando dificuldades em conseguir alimentos diante das medidas de isolamento social. A Fundação Nacional do Índio (Funai) determinou que "até que o pico da doença diminua, não é recomendado aos indígenas deixar as aldeias". Diante disso, as atividades voltadas ao turismo e venda artesanal foram interrompidas.

Para Sarah Lima, bióloga e integrante do coletivo Ceará no Clima, que está estudando e acompanhando a rotina das aldeias durante a pandemia, "o isolamento social está sendo seguido" o que tem dificultado a obtenção de renda e, consequentemente, na aquisição de alimentos. "Com o isolamento, as pessoas não conseguem ir às cidades para comprar esse alimento não perecível", lamenta Mateus Tremembé, da Terra Indígena Tremembé da Barra do Mundaú, em Itapipoca.

Para amenizar a situação, Mateus explica que a tribo, onde vivem 140 famílias, está minimizando os impactos da falta de alimento com a agricultura familiar e pesca artesanal. "Temos peixe, crustáceos, a própria criação de galinhas, porcos, cabra, o siri, que é muito forte", comenta Tremembé.

Na Aldeia Japuara do povo Anacé, em Caucaia, a realidade é diferente. Cerca de 30% dos índios são informais, trabalhando com o turismo ou na agricultura familiar. "A insegurança alimentar é algo que tem se demonstrado muito forte neste momento", lamenta o cacique Climério Anacé. "Temos espaços de agricultura coletiva, porém, já estão lotados". Diante da dificuldade, as lideranças estão realizando uma campanha de arrecadação de mantimentos nas redes sociais para cerca de 138 famílias, nas comunidades de Japuara e Santa Rosa, também Anacés.

Em nota, a Funai informou que está "se articulando junto a diferentes setores do Governo para a aquisição e distribuição de cestas básicas a indígenas em situação de vulnerabilidade com o objetivo de garantir a segurança alimentar dessas populações em meio à pandemia". Para tal, a Funai solicitou às Coordenações Regionais um levantamento da necessidade de entrega das cestas nas suas áreas de atuação.

Já a Secretaria de Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS) do Estado disse, também por nota, que "está em constante contato com as etnias indígenas e está adquirindo cestas básicas para serem entregues a grupos indígenas e outros que estejam com essa necessidade atualmente". Segundo a Pasta, na última semana, houve a doação de duas toneladas de alimentos, além de itens de vestuário, higiene pessoal e material de limpeza.

Território

O cacique Climério Anacé pontua que a pandemia torna mais evidente a falta de regularização do território indígena no Ceará. Segundo ele, somente um dos 15 povos tradicionais (incluindo o povo Karão-Jaguaribara, não presente na lista da SPS, que só contabiliza 14 povos) possui o processo de terra regularizado, ainda que parcialmente.

"O único território é o Tremembé do Córrego João Pereira, em Itarema". Segundo ele, o processo de regularização facilitaria a inserção de projetos de fomento à agricultura familiar específicos para a comunidade indígena. O benefício imediato, conforme avalia, seria uma maior segurança alimentar, sobretudo em momentos de crise, como o vivenciado atualmente. Essa lacuna, no entanto, não é exclusiva aos povos indígenas do Estado. Apenas 8% das 419 terras indígenas já são regularizadas e que integram o patrimônio da União para usufruto exclusivo dos povos indígenas. No Nordeste, são 24 terras regularizadas, duas homologadas e 17 estão em estudo. A Funai, órgão responsável pela regularização, não informou, no entanto, se deste total há alguma contemplação dos povos indígenas no Ceará.

Doações

As tribos em maior dificuldade estão recebendo doações de alimentos e donativos. Os interessados podem entrar em contato através dos telefones:

Povo Anacé: (85) 99635.6151 | 98540-0812

Povo Pitaguary: (85) 99856-7556

Povo Tapeba: (85) 99809-8500

Povo Tremenbé: (88) 99986-9132

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