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"Quando eu entrei na Câmara, muitas vezes taxavam 'vereador de bairro' de maneira pejorativa. Eu tenho orgulho de ser vereador de bairro". A fala do vereador de Fortaleza Adail Júnior (PDT) faz referência a um perfil de parlamentar que perdura no tempo quando o assunto é eleição para Câmara Municipal: aquele com uma base eleitoral vinculada diretamente a um determinado território. 

"Quando a gente diz que um vereador foi eleito com uma base territorial significa que há uma maior concentração dos votos em uma determinada localidade. Existem alguns vereadores que são eleitos de forma territorial, porque estão concentrados em um bairro e em bairros próximos", define a socióloga e pesquisadora do Laboratório de Estudos em Política, Eleições e Mídia (Lepem/UFC), Paula Vieira.

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Na Câmara Municipal de Fortaleza, a concentração de votos em uma mesma região é algo partilhado por quase 40% dos vereadores. 

Dos 43 parlamentares, 27 conquistaram mais de um terço dos próprios votos em uma mesma regional — ou seja, tiveram 33,3% da votação advinda de uma só região. Para alguns destes vereadores, um só território representou mais de 50% dos votos recebidos. Para outros, a importância desta base eleitoral territorial foi ainda mais fundamental: 80% dos próprios votos vieram da mesma localidade.

O Diário do Nordeste mapeou as bases eleitorais dos parlamentares a partir de dados do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE) sobre a votação nas eleições de 2020. Naquele ano, Fortaleza ainda era dividida em sete regionais — atualmente, a capital cearense divide-se entre 12 regionais. A divisão anterior, portanto, foi a base para o mapeamento.

Este levantamento permitiu identificar onde cada vereador de Fortaleza foi mais votado e qual a importância da votação neste território para a soma total de votos do parlamentar. Foram considerados os vereadores eleitos em 2020 e que são titulares do mandato na Câmara Municipal em 2024.

Por isso, foram retirados do mapeamento Antônio Henrique (PT), Carmelo Neto (PL), Larissa Gaspar (PT) e Sargento Reginauro (União) — que foram eleitos como vereadores em 2020, mas renunciaram o mandato após serem eleitos para a Assembleia Legislativa do Ceará em 2022. 

Esta é a primeira de uma série de reportagens do Diário do Nordeste sobre o desempenho eleitoral dos candidatos a vereador de Fortaleza em 2020 e o que isso pode indicar para a disputa eleitoral em 2024.

'Vereador de bairro'

O termo 'vereador de bairro' é amplamente difundido no cenário político brasileiro. Contudo, principalmente em grandes cidades, não é mais uma expressão precisa. Ainda o perfil mais comum de parlamentar nas câmaras municipais, estes vereadores precisam ampliar a base eleitoral — mesmo aquela ligada à localidade —, não sendo possível se restringir a um único bairro. É comum, portanto, que estes vereadores tenham uma atuação em um conjunto de bairros vizinhos. 

"Isso, no Grande Bom Jardim", indica o vereador Marcelo Lemos (Avante) quando indagado a respeito da região em que conquistou grande quantidade de votos nas últimas eleições. Da votação total alcançada em 2020, Lemos recebeu mais de 51% apenas dos bairros da antiga Regional 5 — o equivalente a 2.865 votos. Entre os bairros em que foi mais votado, estão os vizinhos Bom Jardim, Granja Lisboa, Granja Portugal e Siqueira. 

Morador do bairro Antônio Bezerra há mais de quatro décadas, a localidade também é central no desempenho eleitoral de Adail Júnior. Apenas neste bairro, foram mais de 4,7 mil votos. Contudo, a soma de votos dos bairros vizinhos é ainda mais relevante para o vereador: a antiga Regional 3 representou mais de 73% da votação total do parlamentar. "Quem vota em mim é quem me conhece", reforça. 

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Legenda: Fortaleza dividida em (1) Sete Regionais; (2) 12 Regionais
Foto: Divulgação

"É interessante notar que essa representação territorial, por bairros ou determinado espaço geográfico, é muito substantiva na democracia, porque as pessoas vivem e se desenvolvem em determinados espaços geográficos. É natural que demandem políticas públicas ligadas ao seu espaço geográfico", pontua o professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Raulino Pessoa Júnior. 

"O que não quer dizer que seja uma representação atrasada ou em declínio", completa. Este vereador — ou mesmo candidato — com forte ligação territorial pode ser moldado a partir de alguns fatores, como a ausência de políticas públicas na região ou como consequência de atuação política dentro da comunidade. "Primeiro, se temos a ausência do Estado, de instituições do Poder Público e de equipamentos como hospitais, escolas, creches, esse vereador surfa nisso para ser o representante básico daquele território", detalha Pessoa.

Existem ainda os casos de bairros ou territórios que possuem "tradição de organização política". O parlamentar seria, portanto, uma representação desse movimento ancorado, por vezes, em associações de moradores de determinado bairro, por exemplo. "A representação participativa aliada a reivindicação política dos bairros seria representada pela liderança", explica. 

Prioridade para financiamento

A socióloga Paula Vieira pontua mais uma causa para que o vínculo com o território na votação dos vereadores de Fortaleza seja predominante na Câmara Municipal: o financiamento de campanha. "Para conseguir fazer campanha em território mais amplo, é preciso ter mais recursos. Normalmente quem tem recursos são líderes (de votos) dentro do partido", afirma.

Muitos candidatos, portanto, preferem concentrar esforços em um território apenas, tornando inclusive o próprio discurso "mais vinculado à comunidade". "A vinculação é interessante para o vereador, porque direciona as ações e maximiza a possibilidade de se eleger. Se mantém o vínculo, a população vai de alguma maneira enxergá-lo como representante", argumenta. Uma estratégia que pode ser, inclusive, levada para plataformas onde, na teoria, a possibilidade de atingir mais pessoas poderia ser maior, como é o caso das redes sociais. 

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Vieira ressalta que muitas campanhas podem escolher direcionar o conteúdo virtual para moradores da região onde o candidato possui base eleitoral mais forte. "Concentrando o alcance das redes sociais naquelas regiões, no propósito de garantir que fossem aqueles lugares que ele tivesse mais votos", exemplifica.

O motivo é a especificidade da disputa municipal, na qual mesmo a crescente importância das redes sociais nas campanhas ainda é suplantada pelo "corpo a corpo". 

"A interação mais próxima, aparecer, se fazer presente, apertar a mão é bem mais legítimo para os eleitores do que as redes sociais. As redes sociais se tornam uma coisa distanciada. Estar no dia a dia traz a ideia de que realmente se preocupa, que está perto, que está junto. Dá uma sensação de proximidade", ressalta. 

É preciso ficar atento

Por outro lado, tanto Paula Vieira como Raulino Pessoa Júnior alertam quanto aos problemas que podem surgir dos vereadores deverem tanto da própria votação a uma só região. "Ele não é eleito para representar só aquele bairro, é eleito para representar todos", enfatiza Vieira. 

"O território não está isolado da cidade como um todo, ele integra Fortaleza. Apesar de cada bairro ter particularidades e demandas específicas, essa representação tem que estar ligada a uma dimensão mais ampla. O problema é que, muitas vezes, não dialoga, às vezes não se conecta", concorda Pessoa. 

O pesquisador pondera que existem problemas que são comuns a mais de uma região da cidade — mesmo que sejam distantes geograficamente. Portanto, a solução política deve também ser pensada englobando todos estes territórios. "Vai ficando tão específica essa vinculação dos representantes, que se perde a ideia de que precisa se representar um todo, as conexões que a cidade precisa ter para agir como coletivo", completa Paula Vieira. 

"Vereador é vereador de Fortaleza", resume Marcelo Lemos. O parlamentar relata que, apesar do trabalho desenvolvido há mais de 20 anos no Grande Bom Jardim, a atuação dele durante os dois mandatos como vereador não se limitou a esta região. "A gente procura atender todas as áreas", afirma. 

Uma conduta que precisa reverberar ainda nas discussões no plenário da Casa Legislativa, acrescenta Adail Júnior. "Todo parlamentar tem que se preocupar com o que está votando, não estar votando só para o seu bairro, estar votando para toda a cidade. Não tem como votar qualquer matéria temática pensando como vai atingir só aquela região", diz o parlamentar. 

Os perfis de vereador

Apesar de, em Fortaleza, ainda ser predominante o vereador com base eleitoral territorializada, esse não é o único perfil de parlamentar na Câmara Municipal. Com votação pulverizada em diferentes regiões da cidade, alguns vereadores podem possuir um voto mais 'ideológico' ou 'religioso'. Existem ainda aqueles que representam determinada categoria profissional. 

"O vereador ideológico é aquele que as suas pautas não são únicas e são alinhadas seja com a proposta partidária seja com a de um grupo político", afirma Paula Vieira.

"Como ideológico tem os bolsonaristas, que não estão vinculados só a um partido, mas a um grupo específico de políticos que atendem a um perfil. Nas esquerdas, esses grupos ideológicos podem estar organizados de múltiplas formas. Por exemplo, LGBTQUIAP+ e mulheres são grupos que existem na sociedade civil e que são esses os potenciais eleitores daquele vereador", detalha. O "voto ideológico" pode ainda se ligar a bandeiras e demandas específicas, como Saúde, Educação, Segurança e Meio Ambiente. 

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O vereador vinculado a um voto religioso possui um vínculo com alguma tradição religiosa, principalmente ligados a igrejas cristãs — sejam elas evangélicas sejam católicas. "São mais frequentes os discursos religiosos estarem difusos ao longo do território municipal, porque eles vão capitanear eleitores com base nas religiões", afirma.

Por último, existem parlamentares ligados a uma determinada categoria profissional. "A gente reconhece mais facilmente: doutor fulano, doutora fulana, enfermeira fulana, capitão... Eles trazem a categoria profissional para legitimar o seu posicionamento e direcionar também para essas bases", completa a pesquisadora. "Essas divisões não significam que (o vereador) é só uma coisa", pondera Vieira. "Mas predomina mais um perfil do que outro", reforça. 

Existem casos em que os parlamentares aliam diferentes tipos de base eleitoral — somando votos de mais de um 'perfil' de vereador. A vereadora Cláudia Gomes (PSDB) obteve mais de 50% da votação total na antiga Regional 6 — ou seja, 4.388 votos. Um número que foi alcançado, segundo ela, por ser uma região "onde a nossa trajetória é acompanhada há mais tempo". 

"Nosso trabalho não se restringe a apenas um foco específico", reforça ela. A parlamentar cita, por exemplo, a atuação em defesa das categorias profissionais dos fisioterapeutas e dos terapeutas ocupacionais. "Sou fisioterapeuta há mais de 20 anos e luto muito pela nossa valorização e também dos profissionais de saúde como um todo", afirma.  

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Indagado se ter uma base eleitoral ligada ao território poderia oferecer uma vantagem na disputa por uma vaga no Legislativo municipal, Adail Júnior nega. Ele lembra que, dos dez parlamentares mais bem votados em 2020, a maioria não é 'vereador de bairro'. Entre os exemplos estão Ronaldo Martins (Republicanos), Júlio Brizzi (PT), Priscila Costa (PL) e Lúcio Bruno (PDT). Eles não alcançaram nem 30% dos próprios votos em uma só região, possuindo uma base eleitoral pulverizada entre os bairros da capital cearense. 

"A vantagem é quando (o candidato) tem um tema bom e quando faz uma boa defesa daquilo que crê e defende. Alguns querem colocar (o vereador de bairro) como pejorativo, querem dizer que é mais fácil", critica.

Para Marcelo Lemos, ter uma base eleitoral em um território "faz diferença" na hora da disputa. "Quando sai com 50% (de votos) de uma região, está garantindo metade da eleição. O resto vem da nossa ideologia, vem de quem acompanha as nossas ações. Correr atrás de 100% é uma dificuldade grande", considera.