Do café com leite ao tarifaço, há quanto tempo o café é moeda de troca no Brasil
Alvo do tarifaço de Trump, o café brasileiro mantém seu papel estratégico nas negociações políticas e comerciais brasileiras
Um dos produtos brasileiros de maior destaque no exterior, o café entrou na mira do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Desde a última quarta-feira (6), a importação do grão passou a ser taxado em 50% como uma sanção norte-americana contra o governo brasileiro. Embora, neste caso, a estratégia tenha motivações políticas, o uso do café como instrumento de negociação — e pressão — não é inédito. Há quase dois séculos, o produto ocupa papel de destaque na economia brasileira, servindo como moeda de troca no comércio, na diplomacia e nas estratégias de desenvolvimento nacional.
Desde a primeira metade do século XIX, especialmente entre as décadas de 1830 e 1850, o café deixou de ser apenas um produto agrícola para se tornar um pilar da economia nacional. No auge do ciclo cafeeiro, fazendeiros utilizavam safras futuras como garantia de empréstimos, enquanto governos estaduais e bancos nacionais montavam esquemas de financiamento com base no valor do grão.
Conforme Roberto Araújo, historiador, gastrônomo e professor aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), a força hegemônica do café no Brasil se mantém por cerca de um século, entre 1830 e 1930, com o produto tornando-se a principal commodity da economia brasileira.
“Foi um período de impactos econômicos, sociais, políticos e culturais. O café, por exemplo, foi o grande responsável por transformar São Paulo na megalópole que conhecemos hoje, porque a exportação era feita pelo Porto de Santos, mas a bolsa de comercialização ficava em São Paulo”, conta.
“O café torna-se o sustentáculo da lucratividade das elites econômicas brasileiras, além de virar o sustentáculo econômico do próprio Estado brasileiro. Do ponto de vista político, isso se expressou em um determinado período, já na República, naquilo que a gente conhece como política do café com leite. O café como um elemento impulsionador e como um pilar de sustentação da economia brasileira e da lucratividade das elites agrárias do país”
A chamada política do café com leite foi um arranjo, montado na República Velha, que alternava o poder no País entre as oligarquias de São Paulo, produtora do café, e de Minas Gerais, com a produção leiteira.
Mas como o café chegou ao Brasil?
O historiador explica que, antes de chegar ao Brasil, em 1727, o café já ocupava posição estratégica na economia mundial, mas ainda longe do que viria a se tornar.
“Ele era produzido em regiões da África, da Ásia e do Oriente Médio, mas, particularmente na África, onde se origina na Etiópia. Então, o café já fazia parte não só da cultura alimentar dessas regiões, mas também era um elemento que compunha as economias locais e as trocas entre as diversas regiões, países e reinos”, aponta.
No Ocidente, o café se tornou uma bebida valorizada especialmente em centros comerciais como Amsterdã, Paris e Londres. À época, o comércio do produto era cercado de sigilo e controle para evitar que outros impérios acessassem os grãos férteis e ampliassem sua produção.
No Brasil, a versão mais aceita por historiadores aponta que o café foi introduzido por Francisco de Melo Palheta, o militar luso-brasileiro que recebeu a missão de demarcar a fronteira no Norte do Brasil, mas também deveria obter mudas e sementes de café da Guiana Francesa.
Ele não só cumpriu a missão como chegou a fazer experimentos agrícolas na região amazônica — contudo, a investida no local não vingou. Posteriormente, os grãos foram levados para o Rio de Janeiro, já por volta de 1760, e difundidos por outros estados, como São Paulo, Minas Gerais e Bahia.
“Essa história do Palheta se contradiz na medida em que alguns historiadores vão afirmar que, na realidade, o café chegou ao Brasil em momentos distintos nesse mesmo contexto da primeira metade do século XVIII, não tendo, necessariamente, essa primazia na região do Pará. Mas, de fato, a versão mais veiculada é realmente essa de 1727, do Palheta”, afirma Roberto Araújo.
“Nesse processo, o Ceará figuraria como uma região onde o café teria feito um estágio, digamos assim, teria feito uma parada nesse processo de expansão pelo território, até mesmo antes de chegar ao Sudeste, mas não há uma versão que seja unânime”, acrescenta.
Entre chegar ao Brasil e virar um produto comercial
Segundo Roberto Araújo, é preciso considerar que o Brasil, como colônia portuguesa e, posteriormente, como nação independente, esteve inserido em sucessivos ciclos econômicos — do pau-brasil, da cana-de-açúcar, da mineração e, posteriormente, do café.
“O café teria chegado ao Brasil nas primeiras décadas do século XVIII, mas levaria aproximadamente um século para que o País estruturasse uma produção em larga escala, porque a cultura do café não é uma que você planta neste ano e no próximo já está colhendo, ela demanda tempo para que realmente comece a produzir. Então, temos um hiato de aproximadamente um século”, explica.
Esse salto para virar um produto estratégico para a economia nacional, segundo o historiador, ocorreu a partir da década de 1830, em um contexto de declínio da mineração e necessidade de novas atividades lucrativas voltadas ao mercado externo, sobretudo europeu e norte-americano. “Mesmo recém-independente politicamente, o Brasil seguia economicamente dependente do mercado externo. E foi nesse momento que o café brasileiro começou a ganhar força”, aponta.
A razão desse impulso inclui ainda um cenário internacional favorável. Nos Estados Unidos, disputas comerciais com a Inglaterra levaram à substituição do consumo de chá pelo café, o que ampliou a importação do produto. Já na Europa, a bebida se consolidava como hábito de consumo da burguesia, especialmente na França, onde cafés parisienses passaram a receber também mulheres da elite, com a bebida ganhando protagonismo nessas reuniões.
“Bolsas de comercialização de café são criadas em várias regiões da Europa e da América do Norte, e o café brasileiro, pela sua qualidade e oferta bastante significativa, assume um lugar de primazia. O Brasil se torna, nesse contexto, o maior produtor e exportador mundial de café”, conclui.
O fim do ciclo do café no Brasil
O papel central da cafeicultura se estende até o início do século XX. Como explica o historiador, a economia cafeeira brasileira sempre foi atrelada ao mercado internacional, principalmente Estados Unidos e países Europeus, portanto, estava sujeita a crises internacionais, como a que atingiu a economia mundial e “quebrou” a Bolsa de Valores de Nova York, em 1929.
Soma-se a isso a superprodução nacional, que pressionava os preços para baixo. “Ou seja, o preço do café estava cada vez mais barato e o mercado internacional já não absorvia essa produção. Aí estão os elementos centrais da crise da cafeicultura no Brasil. Falências ocorreram, muita gente perdeu dinheiro e os cafeicultores perderam suas produções. O preço do café iria demorar muito tempo para se recuperar no mercado internacional”, aponta.
O impacto foi tão profundo que contribuiu para o fim da política do café com leite em 1930, no bojo da revolução liderada por Getúlio Vargas.
“A sociedade brasileira não se apropriou da maior parte dos lucros auferidos pelo comércio de café, mas, quando veio a crise, sofreu coletivamente os efeitos negativos”
E o café no Ceará?
Em um movimento sincronizado com a produção nacional, o Ceará também viu a ascensão, o auge e o declínio da cultura cafeicultora entre os séculos XIX e XX.
Presidente da Fundação Cultural Educacional Popular em Defesa do Meio Ambiente (Cepema), organização não governamental cearense que atua na assistência técnica da agricultura ecológica, Adalberto Alencar conta que os primeiros registros de café no Ceará ocorrem em 1747, no Sítio Santa Úrsula, na Meruoca. “Ele só chega em 1822 na região de Baturité, onde ele se estabelece, inclusive, com exportação”, aponta.
“O ciclo do café no Ceará acompanha mais ou menos o nacional. No século XIX tem uma expansão, com o aumento da demanda mundial, que é também quando ocorre a introdução na região de Baturité, e tem um ‘boom’, com o Ceará virando um grande exportador, tendo os senhores dos cafés e as moedas daquela região passando a ter lastro no café”, acrescenta.
Adalberto Alencar reforça que, à época, os cafezais cearenses, cultivados em áreas sombreadas, ganharam destaque no mercado internacional. O historiador Roberto Araújo também aponta o papel de destaque na produção cearense. “Os cafés produzidos no Ceará ganham espaço no mercado internacional, especialmente na França. O Barão de Studart, historiador, fez registros em suas obras do café cearense, produzido no Maciço de Baturité, no mercado francês”, aponta.
O café na economia brasileira do século XXI
Embora a crise da década de 1930 tenha levado ao declínio da cafeicultura, o grão nunca deixou de ocupar um lugar estratégico na economia brasileira.
Hoje, ainda que represente uma fatia significativamente menor do PIB em comparação ao auge, o Brasil segue como maior produtor e exportador mundial. Conforme mostrou o Diário do Nordeste, a partir de dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em inglês), a expectativa é de que a safra de café no planeta de 2024/2025 chegue a 175 milhões de sacas.
O Brasil, sozinho, é responsável por 38% de toda a produção, com 66,3 milhões de sacas na atual safra. Isso é mais do que o dobro do segundo maior produtor mundial, o Vietnã, com 30 milhões de sacas do grão.
Essa relevância explica por que decisões políticas externas ainda têm potencial de provocar impactos internos. O principal destino do café nacional é justamente os Estados Unidos. No primeiro semestre deste ano, por exemplo, o país comandado por Donald Trump recebeu quase US$ 1,2 bilhão (R$ 6,7 bilhões na conversão atual) em café, segundo levantamento do ComexStat, plataforma do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC).
Por isso, o tarifaço gera tanta preocupação no setor brasileiro. Paralelamente, a crise também cria oportunidades de diversificação de mercado. A China, por exemplo, habilitou 183 novas empresas brasileiras de café a exportar o produto para o país.
“Gigante com pés de barro”
Adalberto Alencar, da Fundação Cepema, aponta que o momento é de reflexão para os produtores agrícolas nacionais diante da vulnerabilidade de monoculturas.
“Quando você tem uma monocultura dessa, com o país tão dependente dela, você fica frágil. Quando vem uma restrição, uma guerra, uma medida protecionista, como esse tarifaço, atinge em cheio a economia agrícola”, alerta.
“O Brasil precisa diversificar sua economia agrícola. O País não pode mais, por questões ambientais, éticas, culturais e climáticas, ser tão dependente das monoculturas, é insustentável. (...) É preciso se voltar para a construção de mercados internos e a diversificação desse mosaico agrícola”, acrescenta.
Para Adalberto Alencar, essa dependência “faz do Brasil um gigante com pés de barro”. “É uma resiliência muito fragilizada”, afirma.
O presidente da Cepema ressalta ainda que há concorrentes internacionais com mão de obra mais barata que a brasileira e introduzindo avanços tecnológicos na produção, o que pressiona o setor nacional .
“Os norte-americanos sabem disso, por isso atacam o café, porque nos atinge de forma brutal. É uma fragilidade nossa, porque é muito difícil remanejar esse sistema produtivo de uma hora para outra. (...) Acho que essa fragilidade vai continuar, o Brasil vai encontrar mercado para seu café, mas é preciso diversificar, é preciso ter estratégia”, conclui.