Editorial: O estigma do álcool

Foi só em 1967 que a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu o alcoolismo como doença. A moléstia foi incorporada à Classificação Internacional das Doenças (CID-8). Na ocasião, o consumo patológico de bebidas alcoólicas foi inserido na categoria de transtornos de personalidade e de neuroses. A dependência de álcool foi caracterizada pelo uso compulsivo da substância, e pela manifestação de sintomas de abstinência, quando o uso é interrompido.

Mais de meio século se passou desde que este entendimento foi incorporado pela autoridade médica e, em acordo com ela, pelas administrações públicas que preferem a sobriedade científica em detrimento do moralismo tão em voga na política. Historicamente, o tempo ainda é breve, se considerada a longa trajetória da relação dos homens com as bebidas alcoólicas e demais outras substâncias capazes de alterar os estados da consciência. O entendimento médico da questão ainda não foi universalmente partilhado. 

Comum à maioria das culturas, veículo mais comum da embriaguez que, com maior ou menor permissividade, o álcool sofreu sanções em contextos de forte controle religioso. A proibição nem sempre foi o caminho encontrado, mas o excesso – e, mais especificamente, as atitudes excessivas motivadas por seu consumo – foram reprovadas. Moralizou-se a questão, imputando ao sujeito a culpa de manifestar desvio de conduta, numa demonstração de fraqueza, de caráter e de força de vontade. 

Tomar uma doença por um hábito, converter em pauta de costumes o que é de ordem médica, culpabiliza quem padece do mal do alcoolismo. Torna, assim, ainda maior um problema grave, pois impõe um obstáculo ao enfrentamento da doença: o estigma social. Para se buscar apoio, é preciso admitir a existência da doença e a necessidade mesmo de se recorrer à ajuda especializada para minimizar seus danos.

O álcool é substância lícita, e a restrição à sua ingestão é baseada em faixa etária, no caso de crianças e adolescentes menores de 18 anos, e no exercício de atividades que exigem perícia e podem colocar vidas em risco, caso da condução de veículos. A facilidade do acesso consiste, para quem sofre da doença, em um risco maior de recaídas.

O uso nocivo do álcool é responsável por 5,3% de todas as mortes no mundo – e é mais grave entre a população jovem, correspondendo a 13,5% na faixa etária de 20 a 39 anos. É fator determinante para mais de 200 doenças e lesões.

Ainda assim, a dependência alcoólica figura, de forma expressiva, nos levantamentos de atendimentos dos Centro de Atendimento Psicossocial (Caps), no Ceará. Dentre as internações realizadas no Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (única unidade pública a dispor de emergência psiquiátrica no Estado), 22% dos 817 casos foram ligados ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas.

Por fatores culturais, em especial entre a população masculina, o abuso de álcool costuma ser, em parte, tolerado. Os prejuízos que provoca são sentidos na saúde pública, no convívio social e na economia. Deve-se, portanto, reforçar o enfrentamento ao problema, por meio da educação e do esclarecimento, para evitar o excesso e, quando este for diagnosticado como patológico, ser tratado livre de estigmas paralisantes.