Cada um tem sua ideia de fim de mundo, qual é a sua?

Legenda: João José Alves de Jesus, o penitente peregrino
Foto: PH

Com a crise braba do clima e, pra completar o tanque das desgraças, a tragédia da guerra Israel/Hamas, a prosa entre amigos, no trabalho ou no botequim, descamba para ideias apocalípticas. Uns têm imagens bíblicas na cabeça, outros lembram o cinema do gênero filme-catástrofe. Entre os mais jovens, vale o roteiro dos games distópicos. É do jogo da imaginação de cada vivente desse mundão perdido e sem porteira.

Cada um tem a sua ideia, maluca ou não, do fim de tudo. Desde que me entendo por gente, influenciado pelos beatos das ruas e arraiais do Cariri, penso no fogaréu anunciado por aquelas criaturas dignas da melhor literatura fantástica. Como o penitente João José Aves de Jesus, do grupo Borboletas Azuis, personagem de uma recente coluna de Paulo Henrique Rodrigues, o querido e extraordinário PH, colega no Diário do Nordeste.

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João José prevê um apocalipse para o ano de 2037, pelo que sentiu nosso colunista. E aqui não cabe a desfeita ou a galhofa. O devoto de Juazeiro, na mesma conversa enigmática, deixa no ar a sabedoria: são vários finais, feitos e desfeitos, pois prevalece o humano idiota na sua voraz vontade de destruir. Com as armas que movem a guerra ou com a ganância que matam os rios e os mangues.

“Uma enorme bola de fogo cruzará o céu, o Sol girará por três vezes consecutivas, um ensurdecedor trovão ecoará por toda a Serra da Borborema. Em seguida choverá ininterruptamente por 120 dias”, anunciou Roldão Mangueira de Figueiredo, o líder dos Borboletas Azuis de Campina Grande, Paraíba. Nesse momento, ave, já era jovem, lembro muito bem da anunciada catástrofe.

Havia uma data marcada para o início do apocalipse: seria 13 de maio de 1980. Cerca de 700 pessoas seguiam o guru. A maioria delas se desfez de todos os seus bens materiais, incluindo a própria casa onde morava, para fazer a preparação espiritual do fim do mundo.

Os dias que antecederam à data fatídica foram de tensão e medo. Para completar o rebuliço à beira dos açudes Velho e de Bodocongó, o profeta Roldão — empresário do comércio de algodão — desapareceu. Ninguém sabia do seu destino.

Reportagem do “Diário de Pernambuco” registrou o temor de conflito: “A cidade vive dias de expectativas. Nesta semana, cresceu a hostilidade da população contra os Borboletas Azuis. As autoridades temem que haja um linchamento dos integrantes da seita”.

O fim dos tempos havia sido anunciado em 1977 no calendário dos devotos messiânicos, mas a comunidade religiosa, conhecida pelos mantos e túnicas nas cores azul e branca, existia desde os anos 1960. Além do núcleo paraibano, existia, como tratei no início dessa crônica, de outra legião com a mesma crença em Juazeiro do Norte.

O líder Roldão era devoto do “Padim Ciço” e de São Francisco de Assis. A base filosófica do grupo era a sua revolta com o Concílio Ecumênico Vaticano II, documento que promoveu várias mudanças no funcionamento e nas atividades da Igreja Católica, em 1959, sob o Papa João XXIII. Nunca é à toa, tudo fazia sentido.

Os fiéis apocalípticos costumavam andar de pés descalços. Na cartilha de pregações, havia uma mistura de preceitos católicos, espíritas e protestantes. Um pouco antes da data prevista para o grande dilúvio, alguns jornalistas paraibanos desafiaram Roldão a caminhar sobre as águas do açude Velho, no centro de Campina Grande. O empresário chegou a prometer o milagre, mas ficou apenas como chacota nas crônicas satíricas dos jornais da cidade.

No dia 13 de maio de 1980, a data fatal para o fim do mundo, o céu amanheceu até nublado. E ficou nisso. Não caiu um pingo de chuva sequer na Paraíba. Alguns fiéis alegavam que o sumiço do líder religioso e o casamento de L. D., uma garota de 17 anos que havia sonhado com a profecia do dilúvio, podem ter atrapalhado os planos divinos do apocalipse. Roldão morreu naquele mesmo ano.

Não há um só fim, deixou evidente o profeta João José, o mundo vem se acabando a cada burrice humana de apostar todas as fichas no cassino chamado Apocalipse.

Além dos beatos e profetas das ruas de Juazeiro, dois autores também espalharam as cinzas finais nas minhas cansadas vistas: o pioneiro de Araraquara, Ignácio de Loyola Brandão, com o seu “Não Verás País Nenhum”, de 1981, pouco depois dos Borboletas; e quase agorinha o escritor estadunidense Cormac McCarthy, no livro “A estrada”, de 2007.

Como vimos, por demasiada insistência dos seus habitantes que se dizem espertíssimos estrategistas de guerra, um dia o mundo se cansa e acaba mesmo. Não foi por falta de aviso. Já é, já era.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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