Órfão de pai vivo

Quantos pais de LGBTQIAPN+ você conhece que escolheram lutar pelo filho?

Foto: Shutterstock

Há algumas semanas, em um grupo de amigos, surgiu despretensiosamente o assunto Dia dos Pais. Imediatamente isso virou uma piada e, entre brincadeiras, jogamos músicas que seriam trilhas sonoras de relações com os respectivos pais. Todas, absolutamente todas as músicas falavam sobre ausência, frieza ou abandono paterno.

Em um primeiro momento, a gente riu, achou graça da desgraça e criou memes. Acho que porque a gente encontrou no riso um jeito de passar por cima desse assunto sem tantas chagas, sem tantas dores, entendendo que em toda relação familiar há muitas camadas para se analisar, mas o fato é que, passado o riso, achei um tanto sintomático e triste.

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O abandono parental é uma realidade no Brasil. De acordo com a Central de Informações de Registro Civil (CRC), de janeiro a julho de 2023, cerca de 104 mil crianças foram registradas sem pai no país - número maior do que o de 2022.

Para a população LGBTQIAPN+, além do abandono, há ainda uma rejeição por preconceito.

Conto nos dedos os amigos que possuem uma relação de amor, de acolhimento, de compreensão e proteção com seus pais. Arrisco até dizer que de 10 amigos, apenas 2 possuem esse privilégio. Muitos foram abandonados ainda na infância, outros tiveram suas relações cortadas por questões de gênero e sexualidade, e alguns precisaram do distanciamento como ato de defesa.

Essa rejeição, essa ausência afetiva ou o abandono real são situações que fazem com que nós LGBTQIAPN+, na maioria das vezes, nos tornemos pessoas mais rodeadas de amigos do que de familiares, que passemos mais datas comemorativas com outros afetos para não revivermos sentimentos de não pertencimento, de desprezo ou julgamento.

Durante muito tempo, ouvi falar que ser gay estava ligado à ausência de um pai, mas sexualidade não tem a ver com isso. A verdade é que a relação paterna pode afetar intimamente a maneira como nos relacionamentos fora da família, mas de outro jeito.

Se não recebi amor, por exemplo, dificilmente me torno alguém caloroso ou que saiba como demonstrar sentimentos. Se vivo em um ambiente de violência, talvez eu perpetue atos de violência com quem eu me relacione e por aí vai, mas nada disso determina a sexualidade de alguém.

Precisamos pensar também na qualidade dessas relações. Nem sempre um pai presente é sinônimo de pai amoroso, responsável, protetor, que nos oferece segurança, estabilidade, força. Quantos pais de LGBTQIAPN+ você conhece que escolheram lutar pelo filho? Quantos se abriram para desconstruir preconceitos?

Não quero ser pessimista e tratar a rejeição como uma regra dentro das relações familiares com pessoas LGBTQIAPN+, eu sei que há sempre a possibilidade de construir relações saudáveis, bonitas, fraternas, mas pra isso é preciso que os pais possam pensar nos filhos para além de idealizações, para além da concretização de expectativas como se isso fosse condicionante para seu amor, cuidado e presença.

Só construímos relações sinceras e afetivas em ambientes seguros, em que podemos ser nós mesmos. Não é a falta de um pai que determina o caráter e muito menos a sexualidade de uma pessoa, mas a ausência de familiares que nos amam verdadeiramente fragilizam o indivíduo perante as dificuldades a enfrentar no mundo fora de casa.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor