Filme cearense ‘Resumo da Ópera' desmonta limites da criação em ocupação do Theatro José de Alencar
Produção audiovisual surge como fruto da parceria entre os coletivos de artes cênicas No barraco da Constância tem! e Teatro Máquina

O Theatro José de Alencar, a ópera, o clássico, o Brasil, a colonização, o popular, a erudição, a literatura, o cinema, o teatro, a dança, a linguagem, a palavra. Em "Resumo da Ópera", nada e ninguém — ou melhor, nada e Ning — sai intocado.
Em um vertiginoso gesto de dessacralização, o longa-metragem de estreia de Honório Félix e Breno de Lacerda opera a partir de referências múltiplas e da aposta em montar, desmontar e remontar os limites da criação.
Produzida pelos coletivos cearenses de artes cênicas No barraco da Constância tem! e Teatro Máquina, com coprodução da Marrevolto Filmes, a obra foi apresentada na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes, na Mostra Aurora, dedicada a estreia em longas, no final de janeiro.
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Diálogo com contextos sócio-históricos
Fruto de uma pesquisa inicial dos dois grupos sobre o romantismo brasileiro, "Resumo da Ópera" — com grande elenco de artistas do Ceará e texto produzido coletivamente e organizado por Honório — foi gravado em 2021 no centenário Theatro José de Alencar.
Patrimônio histórico, arquitetônico e cultural de Fortaleza, o espaço guarda uma história intimamente ligada a contextos socioeconômicos do Estado ao longo do século XX.
Resultado de uma busca por "civilidade" advinda da influência da belle époque no Ceará no período, o TJA foi inaugurado em 1910 e, nos anos iniciais, teve ocupação marcada por divisões e marcadores de classe dentro da própria estrutura: a área de camarotes era destinada aos abastados da Capital, enquanto as conhecidas "torrinhas" eram espaço dos "populares", por exemplo.
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Essa estratificação demarcada foi perdendo força ao longo da segunda metade do século XX e, na última década antes da virada do milênio, o Theatro passou por um processo não só de restauro e reforma físicos, mas de pensamento. A partir dos anos 1990, se reconfigurou e passou a abrigar formações gratuitas, programações abertas e múltiplas, e públicos — da plateia aos artistas — também diversos entre si.
Concretudes e simbolismos do Theatro José de Alencar
Essa contextualização surge na tentativa de colocar "Resumo da Ópera" em diálogo com a história não somente do próprio equipamento, mas do que ele simboliza: da reverência ao escritor cearense José de Alencar aos marcos "mudancistas" que configuraram e reconfiguraram o teatro ao longo das décadas.
A arquitetura e os espaços diversos que o TJA possui são, no filme, explorados de forma pouco óbvia pela câmera de Breno de Lacerda. A imagem turística de cartão postal dos vitrais da fachada do equipamento, por exemplo, surge de forma pontual somente depois que já foram explorados os bastidores, os jardins, o porão, as escadas e diferentes outras minúcias da estrutura.
Tal esquadrinhamento dessacraliza o Theatro ao justamente subverter o olhar "esperado" para um patrimônio do tipo. Há um jogo duplo entre rever criticamente o que aquele espaço carrega historicamente — da ideia de pretensa alta cultura à estratificação social concreta — e a busca por apresentar e aproveitar cada centímetro de um TJA que se abre para criar junto.
Nem cinema, nem teatro: ambos e além
A dessacralização se espalha não somente pela estrutura física dele, mas também pelas ideias de teatro e cinema. Friccionando fronteiras, o que se cria em "Resumo da Ópera" é algo que não é nem um, nem outro, ao mesmo tempo que é os dois e algo além deles.
Sequências mais clássicas do que seria "teatro filmado", se utilizando do palco italiano do equipamento, por exemplo, quase não surgem na obra. A tônica dessa deriva criativa é, de fato, outra, que, para definir, se aproximaria mais da dança. Ao esquadrinhar cada espaço do Theatro, o filme propõe um constante movimento, evidenciado na aposta em “cenas” longas e na estruturação que emula um plano-sequência.
No seminário sobre o filme na manhã seguinte à exibição em Tiradentes, a crítica convidada Alana Falcão — ela própria uma artista do corpo — ressaltou "Resumo da Ópera" enquanto um filme coreográfico, pulsão ecoada pelos próprios realizadores como gênese da criação na obra.
Brincadeira como criação
Os movimentos da câmera em si pelo TJA e dos corpos de artistas-criadores em cena são, ainda, acompanhados por uma torção da palavra e, junto dela, do significado e da compreensão. Palavras são cortadas, repetidas, reestruturadas e, ao serem faladas, adquirem um caráter também vertiginoso. O inicialmente citado "Ning", por exemplo, seria, pelo óbvio, "ninguém", mas o próprio texto questiona a obviedade dessa completude. Ning, torna-se então, sujeito.
Jogos de palavras, referências eruditas, prosódia cearense e uso de línguas estrangeiras, ainda, se acumulam e sobrepõem entre si e em relação às imagens construídas. Que todo o panorama sonoro do longa tenha sido construído posteriormente anos depois das filmagens, a partir de dublagem e trabalho sonoplastia, acentua os descolamentos — técnicos, práticos e simbólicos — dos sentidos.
O uso do termo "dessacralizar", aqui, pode ser sinônimo de arengar, frescar, ou, como Honório repetidamente definiu no debate, brincar — num sentido mais aproximado da brincadeira da cultura popular.
"Resumo da Ópera", estão, é exemplo dessa frescagem — ou "fertilidade", como coloca o coordenador curatorial de Tiradentes Francis Vogner dos Reis — do cinema cearense de extrapolar os parâmetros do que seria cinema e arriscar amálgamas, incorporações e relações com outras formas, expressões e pensamentos dos fazeres artísticos
*O repórter viajou para Tiradentes a convite do evento