A rainha, o rei e o Sméagol: como o poder afeta nosso cérebro

O poder gera uma lesão cerebral e o antídoto é ter experiências humanas profundas

Foto: Marketing/ SVM

O ser que virou símbolo

Quando dizemos que alguém tem uma função meramente representativa, temos o hábito de dizer que virou uma “rainha da Inglaterra”. Símbolos são importantíssimos para a criação de uma percepção e, sob os seus mais de 70 anos de reinado, Elizabeth Alexandra Mary criou uma imagem de estabilidade que na verdade não foi congruente com as transformações que o Reino Unido viveu.

Pelas mãos de Margaret Thatcher, a Inglaterra transformou seu processo de relação trabalhista através de uma afrontosa luta contra os sindicatos, abalando a produção nacional por alguns anos em meio a greves e uma inflação que passava dos 20%.

A rainha viveu um pós-guerra de reconstrução do país e de suas relações internacionais, uma luta pelas Malvinas contra a Argentina que até hoje geram feridas, crises na Irlanda e grupos separatistas que nunca deixaram de ocorrer. Uma rainha que soube contornar crises de uma coroa brutalmente exploradora da África sem deixar de capitanear eventos considerados colonizadores em defesa da sua Commonwealth, entendeu seu papel de agregadora e não de influenciadora direta, pelo ato simbólico, sem entrar nas questões republicanas de uma nação que tem em seu parlamento a verdadeira gestão, com líderes escolhidos pelos seus súditos.

Elizabeth ainda teve que lavar roupa suja dentro de casa com o fim do casamento do seu filho, atual rei. Ao fim do seu reinado, ainda assistiu ao Brexit, um contramovimento de união de todo o continente que derrubou três primeiros-ministros e ainda assim manteve o status do país como uma das grandes e estáveis economias do mundo.

A serenidade e o simbolismo de algo que nunca se abala, manteve uma imagem de força e manutenção das instituições. Isso a rainha, mesmo que apenas simbólica, conseguiu fazer.

"Um herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo." 
Joseph Campbell - O Herói de Mil Faces.

Imagine como um parlamentar inglês, diante de alguma ideia ou vontade de busca por benesses com dinheiro público, na sua tratativa por conseguir aprovação, ter que escutar de algum conselheiro: “nem a rainha tem esse benefício, nem tenta, vai ficar difícil de defender”. A existência de uma coroa com tanta manutenção de um discurso pela estabilidade cria uma espécie de limite, ainda que alto, para voos não republicanos.

A rainha que sabia gerir sem sair do seu tabuleiro

Elizabeth usou três estratégias muito fortes que qualquer gestor precisa ter para manter seu status.

1. Consistência. Jamais mudou seu estilo de liderar, adaptando-se aos tempos, ao realizar comunicados em diversos meios, acompanhando seus avanços. Nas Olimpíadas de Londres, em 2012, entrou na brincadeira e fez um vídeo com o ator Daniel Craig, o 007, em que saía do palácio de Buckingham para, de helicóptero, ir a cerimônia de abertura, saltando de paraquedas, direto para o estádio (obviamente que um dublê saltou no lugar do ator, a rainha eu tenho minhas dúvidas).

2. Motivadora. Seu trabalho no pós-guerra deu motivação para reconstruir, sendo uma voz importante no papel da mulher na retomada econômica. Na batalha contra a covid, defendeu os métodos científicos e agradeceu aos súditos que estavam na linha de frente do combate à pandemia.

3. Presença. A rainha jamais faltou um compromisso oficial, mesmo em condições já difíceis. Como exemplo, dois dias antes do seu falecimento, recebeu, já enfraquecida, a então nova primeira-ministra do país, Liz Truss. Ela era a rainha, podia muito bem passar o dia assistindo The Crown na Netflix ou escutar o Nas Garras da Patrulha na Verdinha, mas preferiu sempre entender, humildemente, que sua função para o país era representacional e, já que era só isso mesmo, não podia jamais se fazer ausente.

Uma rainha que sempre discursava com textos previamente pensados e evitou ao máximo criar polêmicas que abalassem sua nação

Uma rainha que, ainda princesa, prestou serviços a seu país quando decidiu entrar no exército e atuar diretamente em tarefas ligadas à Segunda Grande Guerra. A Princesa Mecânica, nome que a imprensa britânica cunhou-lhe quando trabalhou na manutenção de automóveis usados na guerra, fez com que a sua nação tivesse um olhar diferente para a primeira monarca a laborar em um conflito bélico.

Por mais nababesca que tenha sido sua trajetória, ela realmente soube dar mais vida ao símbolo do que a si. Ter vivido uma experiência humana profunda na guerra, talvez tenha dado suporte para que a coroa não tivesse um peso maior na sua busca por poder.

E o novo rei. Sustenta a coroa na cabeça?

Essa é a missão do Rei Charles III (confesso que esse nome só me faz lembrar do fantástico Ray Charles, faltou alguma sacada no nome do novo rei). Compreender que hoje ele é o líder simbólico de um grupo de países que não tem nele qualquer tipo de simpatia que torne a coroa sustentável sob sua cabeça, será desafiador. O poder gera uma série de questões conflitantes na formação da empatia de um ser, isso vale de cargos de menor grau hierárquico até mesmo para um rei.

Desde a Síndrome do Pequeno Poder, situação em que um gestor assume algum patamar de gestão e, que tal vantagem cria um modelo de autoridade opressora, são comuns em nosso cotidiano casos como do vendedor que oprime o cliente que não aparenta ter posses, ou quando um adulto humilha uma criança no lugar de educar, ou ainda quando um analista de uma empresa, por exemplo, assume um cargo de supervisão e imediatamente entende que tem nos seus antigos pares pequenos serviçais e não parceiros na construção dos objetivos da corporação.

No caso do novo rei, o poder tem uma magnitude que, se usada de forma equivocada, pode acarretar grandes problemas econômicos para seu povo.

A coroa dará a Charles Philip Arthur George Mountbatten-Windsor uma força que lembra a questão central da saga do Senhor dos Anéis onde, na terra média, um anel de poder dava, àquele que tivesse sua posse, grandes poderes, que obviamente vinham acompanhados por grandes responsabilidades, como bem diria Stan Lee quando desenvolveu o personagem Homem Aranha.

Pois é, está uma mistureba aqui, mas não é novidade para ninguém que entregar grandes forças a quem não tem base para aguentar pode fazer com que o rei sofra os males que o personagem Smeagol teve na sua jornada em Senhor dos Anéis e terminar seu reinado virando um Gollum, um ser que se autodestruiu por ser mesquinho e encantado pelo poder em troca de sua própria existência.

Assim como o personagem da ficção, um hobbit inofensivo, de posse de tanto poder, conseguiu apenas se autodestruir e não construir. Será o destino de Charles?

O cérebro realmente se lesiona com o poder

Uma pesquisa desenvolvida pela Universidade de Berkley, sob a liderança do psicólogo e PHD Dacher Keltner, demonstrou como o poder altera o cérebro humano. Keltner apresenta um podcast chamado The Science of Happiness (A Ciência da Felicidade) e lá apresenta uma vasta análise de suas pesquisas. Uma delas trata do Paradoxo do Poder.

O que diz o Paradoxo? Quanto maior o poder, menor será a empatia. Com esse postulado, Keltner descreve como esse ganho afasta o líder das pessoas. Essa questão é importante, pois quem lidera sabe muito bem como é solitário o ato de liderar e, a falta de uma experiência humana profunda, retira do âmago do ser a capacidade de ser empático, nascendo a tirania dentro de nós. Em uma sociedade moderna cada vez mais individualista, onde o conceito de Cocooning* cresce de forma natural e aceita, as experiências de convívio inter-humanos tendem a diminuir e a tirania social a crescer.

E no cérebro? O poder gera um efeito congruente a um traumatismo craniano. Poderosos tendem a agir de forma impulsiva, menos consciente dos riscos e incapazes de escutar o ponto de vista de outros.

Em um dos vários testes aplicados pelo professor, ele apresentava para um grupo de pessoas comuns e outro de pessoas poderosas, imagens de outras pessoas no intuito de descobrir o que elas estavam sentindo. Os poderosos tiveram os piores resultados. Intrigado com o que obteve, avançou o estudo para uma análise em uma máquina de estimulação magnética transcraniana e descobriu que o poder tinha alterado o processo neural chamado espelhamento, exatamente o mecanismo relacionado a empatia. Em resumo, o poder retira a capacidade de se ver no próximo.

Sem o remédio da vivência humana profunda, onde a dor do outro, os problemas, anseios, verdades das diferentes formas de enxergar a vida e o mundo, a empatia não ganha repertório para um espelhamento sustentável em nosso modo de pensar.

Se você é líder, entenda que as diferenças existem, compreenda o todo, controle seu discurso e crie formas para que o todo possa construir e não apenas obedecer. Além de ser desestimulante, é altamente prejudicial na busca por caminhos diversos na hora de fazer qualquer empresa, família, nação ou gesto ganhar um final feliz.

Vida longa ao rei e sabedoria. A economia do Reino Unido agradecerá.

*Cocooning: conceito em inglês que retrata o efeito das pessoas se recolherem em casa e reduzirem atividades de convívio na rua.