A 'bolha de Chandon', Zygmunt Bauman e a vida social fake ilustram o mercado do medo

Foto: Marketing/SVM

Em tempos de guerra, onde os animais Homo sapiens avançam em disputas por elementos que não tem o valor de uma vida, voltamos o olhar para um medo pertinente que é o da morte. O mais forte dos temores ganhou muitas facetas com o passar dos tempos. O medo da agressão a integridade física sempre permearam a sociedade e com isso muitos rituais e comportamentos se consolidaram.

A sociedade do consumo não ficou para trás, e uma série de produtos de proteção foram desenvolvidos. Moramos em uma nação que um cidadão anda de carro blindado de uma forma até esquisitamente natural. Em outras pátrias, essa necessidade estaria restrita ao chefe de estado.

Como foi bem-dito pelo O Rappa na música “Minha Alma”:

As grades do condomínio são pra trazer proteção. Mas também trazem a dúvida se é você que tá nessa prisão

Seja no condomínio ou dentro de um carro, a decisão pela proteção nos coloca sempre dentro de casulos que na verdade nos distanciam da comunidade e do ambiente como um todo. Nos acostumamos a viver bizarrices sociais como forma de proteção. Temos medo de usar o celular na rua, medo de sair a pé pelas calçadas estreitas, medo de áreas inteiras da cidade. O medo do abalo ao físico com traumas mentais que ficam mesmo após a dor patrocinam setores inteiros.

Vamos pegar o caso da paixão nacional que são os carros e a proteção máxima que o mercado consegue entregar que são os blindados. No mundo dos carros 'antibala', temos a seguinte conjuntura: somos o país com maior média per capta de carros blindados no mundo.

Não obstante o mercado cresce absurdamente com 45% de crescimento entre 2020 e 2022. Segundo a Abrablin (Associação Brasileira de Blindagem), só no ano passado mais de 20 mil veículos receberam algum tipo de proteção balística. Se contarmos com o ticket médio informado pela associação, que é de aproximadamente R$ 67,2mil, esse mercado gerou algo perto de R$ 1,5 bi em 2022.

O carro ou a vida?

Com 40 mil homicídios só em 2022, temos até alguma justificativa para tal, afinal a bala pode sim atingir nosso corpo e esse medo é factível. Ainda no mercado automotivo temos um dado curioso no mundo dos seguros: em 2022 o setor de seguros no geral faturou R$ 355 bilhões, segundo dados da Susep (Superintendência de Seguros Privados). Quando nos aprofundamos nessa dinheirama do setor, vamos perceber que o brasileiro investiu R$ 27 bilhões em seguros de vida e R$ 51 bilhões em seguros automotivos.

Quando notamos que o carro teve quase o dobro de receita que a vida, fica nítido que temos aí uma questão pedagógica do mercado e de construção de um medo trabalhado na adaptação do comportamento e o meio.

Se concordarmos com Steven Pinker, ficamos com a sensação de que: para os carros e para os predadores estamos prontos, mas para a própria vida estamos mais próximos dos animais que evoluem em ilhas.

E por que ilhas? Essa está moleza. Quanto mais rico no Brasil, mais dentro de uma bolha social vivemos.

Costumo dizer que o rico brasileiro vive na bolha de Chandon, ele trafega livremente na sua ilha de prédios nababescos com piscinas para todos os lados. A vida dele trafega num carro blindado pelas ruas do mundo que ele teme, e o carro é a sua proteção. O carro nada mais é que o escudo para que possa sair do Chandon e consiga passear pelas bolhas de sabão de coco do mundo normal. Certo mesmo são os postos Ipiranga que já faz tempo que fala “apaixonados por carro como todo brasileiro”. O carro é acima de tudo um posicionamento social. 

Qual o medo que Bauman nos relatou?

Ocorre que as farmácias não estão lotadas de clientes com receitas de ansiolíticos e antidepressivos somente por causa do medo de uma bala, de uma queda, de um desabamento ou situações fisicamente possíveis de se sofrer um trauma. O medo que mais cresce no mundo não afeta a integridade física, ela está no aspecto comportamental. 

O filósofo Zygmunt Bauman no seu livro Medo Líquido trata dos vários tipos de medo e nele a morte é percebida em três graus. A primeira é a morte fisiológica. A segunda seria a morte de outro ente próximo. A terceira seria a quebra do relacionamento ou a exclusão.

Não vou me aprofundar em toda a análise do filósofo (até porque nem tenho conhecimento para tal). Vamos nos ater ao terceiro nível e como o mercado tem conseguido lucrar com essa situação social. Para ser mais preciso, vamos falar do medo da exclusão no mundo virtual.

Na era das redes sociais, a quebra de relacionamento acontece de forma bastante comum. Como “fulano foi cancelado” cria uma forma de exclusão que pode matar o ser virtual que mora no seu aparelho de celular e que você se relacionava todos os dias. Talvez seja o medo mais moderno criado pela sociedade das bandeiras sociais efêmeras.

O medo de perder um relacionamento gera um vácuo emocional que faz com que os cidadãos do novo milênio se permitam viver de símbolos que não trazem diretamente nada e não agregam funcionalmente em sua vida.

Antes existia a dor do fim da relação e todo o momento de transição que o coração precisa. Só que no mundo das relações perfeitas do Instagram, você também se sente preocupado com o julgamento da sociedade, feita pelo tribunal cruel da internet, que julga sem provas com base em fofocas e teorias conspiratórias.

Basta ver a questão do fim do relacionamento de Whindersson Nunes e Luísa Sonza. Muitos jugaram ele ou ela, mas no fundo, quem sabe o que viveu e passou foram eles, mas a versão que ficou foi a fofoca, e a dor de ambos sequer foi cogitada ou respeitada. No fim, teve mais respeito entre eles do que entre os que jamais conviveram um único minuto da relação no mundo real.

A moda como ingresso 

Se o carro é barreira de proteção e de posicionamento social para alguns mais abastados financeiramente, a moda é o ingresso de entrada para a festa da aceitação social da maior parte da sociedade. Basta perceber como uma pessoa é tratada como “especial” ou “super chique” por andar coberta de grifes famosas ou pelo menos no estilo que fala o idioma do grupo que quer se inserir.

O mercado de moda em 2022 gerou no Brasil R$ 208 bilhões. Para muitos, esses preços pesam no orçamento, mas servem como oportunidade de ascensão para uma vida melhor no futuro, pois pasmem: a vida virtual fake realmente constrói pontes para a vida real.

Muitas vezes o luxo improvável para quase 99% da população se torna essencial para construir tais pontes e assim criamos formas de entrar na “bolha de Chandon”. Mesmo que seja com um crediário de 60 parcelas.

Bom, se você se endivida para entrar na bolha alheia, nasce aí mais um grande medo: o temor de ser descoberto que suas redes sociais vendem uma fantasia. Essa confusão entre o mundo que se vende e o que se vive tem criado na sociedade uma espécie de esquizofrenia de autoaceitação.

Talvez aí que se perceba o motivo do mercado de psicotrópicos ter crescido tanto. Não chegamos a ter R$ 5,7 bilhões em vendas de remédios para depressão e outros R$ 3,5 bilhões em ansiolíticos no Brasil em 2022 só por medo.

A culpa da dopamina e o seu vício “aceitável”

A busca desenfreada pelos pequenos prazeres ou a busca pela dopamina tem nos apresentado um vício em pequenas conquistas sociais desenfreada. Dentro dessa busca, as redes sociais são os grandes impulsionadores na entrega de dopamina para esse novo ser.

O que é a dopamina? Conhecida como o hormônio do prazer, essa danada cria em nosso cérebro uma recompensa imediata que nos traz uma sensação de prazer e até mesmo de euforia. Quando você está com insônia e entra em uma rede social e, repentinamente, uma promoção de algo que você estava querendo surge na sua tela com 30% de desconto (algo que o algoritmo já sabe sobre você, até demais!), nesse instante a dopamina te diz: “vai lá lindão! Faz a festa do teu ego! Aproveita!”. Você compra, se sente o máximo e no dia seguinte percebe que nem era isso tudo que você queria. Só que isso acontece também quando você ganha uma curtida, um comentário elogioso, novos seguidores ou qualquer recompensa que te dê algum elemento positivo na sua jornada de subir e descer telas e mais telas.

Só que nem tudo são flores e o corpo humano sempre busca um equilíbrio, algo conhecido como homeostase. Se entra dopamina demais, a homeostase vai te botar nos eixos do mundo normal automaticamente (parece que esqueceram de combinar com o nosso DNA essa enxurrada de recompensas aleatórias). Esse sobe da dopamina e desce da homeostase, quando em quantidades avassaladoras que as redes nos ofertam, levam a quedas para abaixo dos níveis basais e aí que entra o preço do prazer efêmero.

A pessoa fica ansiosa para ter mais daquilo. Ela se irrita quando não consegue de imediato, começa a ficar melancólico ou depressivo dependendo do nível e por fim fica na fissura para reconquistar aquele prazer. Você pensou que parece coisa de drogado? Pois é, é igualzinho. Você fica aí criticando o “viciado na erva”, mas tá no mesmo rumo. Não se engane, clínicas para jejum de dopamina e controle desse tipo de vícios serão vedetes dos tratamentos futuros da sociedade do fake social, onde lutamos para virar o que dissemos ser, sem jamais sermos.

Chegamos no cenário onde para se ter prazer de viver e não apenas de dizer que vivemos, será uma transição difícil entre vida normal e virtual. Duvida? Continua aí no teu Tik Tok, Instagram e Facebook que daqui uns anos o mundo mostrará. Acredita?

Pois faz assim, tudo no mundo com moderação pode existir, coloca um limite diário nesse uso e usa o resto do tempo para contemplar a vida, os amigos, a natureza e os amores reais que te dão um prazer e não cobram o preço da dopamina fake das redes. Quando vivemos as recompensas da vida real, liberamos uma dopamina que é sustentável e é do bem.