A balança da moral versus dinheiro: estupro, gols e receitas no ecossistema imundo do futebol

Foto: Marketing/ SVM

Quem acompanha futebol internacional deve ter visto os incidentes de racismo sofrido pelo jogador brasileiro Vinicius Júnior. Destaque do clube de futebol mais vencedor do planeta, o Real Madrid, Vini Jr. tem tido postura madura em uma luta em que ele está sozinho. A luta de Vini Jr. e de qualquer luta de bandeira que defenda direitos essenciais vive sob uma balança de peso moral versus peso do prejuízo financeiro. 

Já tem um tempo que se espera dos organizadores da Liga Espanhola (La Liga) uma atitude forte de combate ao racismo e, até o momento não tem acontecido muita coisa. Ocorre que Vinicius continua crescendo e assim tende a acabar um dia mudando de clube para jogar em uma liga que ele se sinta mais protegido. Afinal de contas, ninguém se sente bem em ir jogar na cidade do adversário e ser recebido com um boneco pendurado no viaduto pelo pescoço vestindo a sua camisa acompanhada de frases de ódio.

A ausência de apoio à Vini Jr. chega a ser cruel. Não existe de outros atletas ou de outros clubes nenhum movimento forte que trate a questão absurda que é o racismo.

Na balança financeira versus moral da liga espanhola, o peso de ver estádios vazios e receitas baixas para os times punidos pesa mais que a luta contra o racismo. Vale lembrar que os clubes da liga espanhola terminaram o ano de 2022 com prejuízo de R$ 4,8 bilhões, segundo relatório publicado pela própria liga. A manutenção da saúde financeira dos clubes parece pesar mais diante das inexistentes atitudes dos gestores daquela liga. 

Liga inglesa: a defesa social tem outro valor

Criada em fevereiro de 1992, a Premier League nasceu da união dos clubes ingleses que jogavam a chamada “primeira divisão inglesa” de um campeonato organizado pela Football Association, a mais antiga entidade de futebol no mundo.

Após 104 anos de parceria, os clubes decidiram que sozinhos organizariam o seu campeonato e começaram com uma decisão simbólica: não mudariam a regra do campeonato, nem a quantidade de clubes da divisão e muito menos a quantidade de rebaixados. Nascia então a liga de melhor reputação do futebol atual.

Vamos lembrar quem em 1992 o futebol mundial tinha olhos para a Serie A italiana e a “era de ouro” do AC Milan. Estamos em 2023 e a liga italiana sofre com casos de corrupção, negociações fraudulentas, loterias e jogos de apostas definindo o resultado dos jogos.

O fato é que por mais que Milan, Inter de Milão, Juventus, Roma e muitos outros grandes clubes da Itália tenham sua imagem e fama pelo planeta, o ecossistema não apoia mais o seu core business.

Enquanto a La Liga vê de lado o racismo sofrido por Vinicius, a Premier League não proíbe que seus atletas se ajoelhem no minuto que antecede os jogos em um protesto contra o racismo ou muito menos tenha alguma proibição de uso de braçadeira de capitão com as cores do movimento LGBTQIA+ (braçadeira esta que a FIFA proibiu o uso na Copa no Catar). 

No último mês de marco, o mais longevo programa esportivo do mundo - segundo o Guiness Book, teve a ausência de seu apresentador e de todos os comentaristas. O Match of the Day, programa da tv inglesa BBC lançado em 1965, sofreu um boicote do ex jogador inglês Gary Lineker, que apresenta o programa desde 1999. Ele é um ídolo inglês e tem uma audiência enorme na terra do Rei Charles.

Gary em seu Twitter pessoal, comparou o novo sistema de imigração inglês com o nazismo e por isso foi convidado pela BBC a se afastar do programa. Vale lembrar que a BBC é uma tv estatal e o primeiro ministro criticado é o chefe da emissora. Pois disse:

“Não há grande afluência.  Recebemos muito menos refugiados do que outros grandes países europeus. Esta é apenas uma política incomensuravelmente cruel dirigida às pessoas mais vulneráveis ​​em uma linguagem que não é diferente daquela usada pela Alemanha nos anos 30, e estou fora de ordem?” 
Gary Lineker, 13 de março de 2023

A sociedade britânica do futebol inglês não brinca com coisa séria. Os demais comentaristas desistiram de participar da edição do programa naquele fim de semana e, todos os jogadores da liga decidiram não dar entrevistas ao tradicional programa inglês. Na terra onde nasceu o futebol, o entendimento de que eles não devem ficar alheios a questões sociais se faz presente. 

Na balança do futebol da terra do rei, o respeito a diversidade de gênero, raça e religião vive uma realidade mais madura. Faz todo sentido quando marcas inglesas tem suas receitas provindas de países asiáticos, africanos com força além da própria Inglaterra.

A força da diversidade pode ser vista nos valores assinados em 2019 pela liga inglesa na venda dos direitos de tv para a China: uma pequena bagatela de US$ 724 milhões (em uma conta rápida com o dólar à R$ 5,04 seria algo perto de R$ 3,6 bi). A liga tem um cântico especial para o artilheiro egípcio Mohamed Salah, do Liverpool, que comemora gols escutando sua torcida cantar: “Se ele marcar mais alguns gols, vou querer ser muçulmano também”. 

Um país que em 2022 viveu seu recorde de imigrantes com quase meio milhão de novos residentes em apenas um ano.

Mas nem tudo são flores. 

A mesma liga que respeita a raça e gêneros diversos, também aceita que ditaduras sanguinárias lideradas por sheiks árabes possam adquirir clubes e torná-los máquinas do esporte com envio de investimentos que são amplamente investigados e denunciados pela imprensa.

Neste ponto, a receita de petrodólar é maior que o respeito às mulheres árabes que sofrem sanções bastante rígidas.  

Quando olhamos para o Brasil, nós temos um campeonato que até vinha seguindo uma regra clara. Entretanto quando aconteceu dos times de maior tradição e poderio econômico político se reencontrarem na primeira divisão, eis que a CBF decide discutir a mudança da regra de descenso, onde caiam 4 times, seriam apenas 3.

O que motivou isso? Protecionismo? Parece que sim. E a competitividade, importante para fazer o futebol melhor, onde fica? Os clubes de divisões maiores terão mais apetite ao risco de evoluir e crescer com essa diminuição da quantidade de janelas de acesso? Não. A pressão da imprensa obviamente derrubou essa discussão, pois era injusta e de alguma forma imoral.

Ainda em nossa liga temos casos de racismo acontecendo com frequência e raríssimos casos de punições exemplares. A rara exceção foi contra o atleta Antônio Carlos Zago, que teve uma atitude racista em 2006 e foi punido pela federação gaúcha de futebol com afastamento por 120 dias e pela justiça comum quando precisou justificar durante três anos ausência por viagens por mais de 15 dias. O próprio atleta assume que errou e o preço que paga de verdade é o de ter seu nome criticado quando assume algum time, como está sendo o caso desta última semana quando anunciado pela direção técnica do Coritiba. 

O estupro na cultura da bola

Enquanto ligas estão focando em apoiar questões da sociedade, aqui temos atletas acusados de estupro sendo tietado por clubes. Vamos lembrar que Robinho, só não voltou a entrar em campo pelo Santos por pressão da imprensa e por conseguinte da sociedade.

Na balança do caso Robinho, condenado pela justiça italiana por estupro, a pressão de patrocinadores que não queriam ter sua marca ligada a um atleta condenado pesou na decisão do clube, pois a imprensa tornou essa situação muito crítica.

Entristece saber que essa pressão financeira tenha sido o peso da decisão de cancelar a contratação. 

Se faz necessário que o respeito ao cidadão também nasça na visão dos clubes e assim o seu tamanho na sociedade ganhe a reputação devida.

O caso Robinho tem mais força por ele ter sido oficialmente condenado pela justiça, mas temos casos ainda em julgamento de atletas famosos como Daniel Alves. Confesso que temo que ele seja contratado por algum clube brasileiro quando estiver em liberdade, mesmo que venha a ser condenado, afinal de contas o Brasil convive com a situação de clubes que ainda tentam contratar o goleiro Bruno, o ex-atleta do Flamengo, condenado por um assassinato brutal da mãe de seu filho, que após anos de reclusão pode continuar a cumprir sua pena em liberdade condicional e já foi contratado por diferentes clubes brasileiros.

Por falar em Flamengo, lá se vão 4 anos que 10 garotos da base foram mortos em um incêndio que até o momento não teve nenhum dirigente punido. É por isso que que fica tão difícil acreditar em profissionalismo em nosso ecossistema.

Na última semana, outro caso de violência sexual chamou a atenção no noticiário em virtude da contratação do técnico Cuca por parte do Corinthians. Cuca foi condenado pela justiça suíça por atentado ao pudor com uso de violência (enquadrado no antigo artigo 187 do Código Penal da Suíça) em uma série de provas apresentadas pela defesa da vítima contra a sua pessoa. O técnico teve participação em um ato de violência sexual coletiva em 1987 com outros três atletas do Grêmio contra uma garota suíça de 13 anos. 

Naquele tempo, a sociedade “passava muito pano” para esse tipo de crime e a cultura brasileira tinha um viés de culpar a vítima. Ocorre que estamos em 2023 e essa visão caminhou alguns passos para um viés mais protetor a mulher, mas ainda é pouco. De todo modo, a pequena mudança cultural em defesa da mulher das últimas décadas fez com que a torcida do Corinthians protestasse contra a escolha de Cuca. Logo o time da Democracia Corintiana. O time do “respeita as mina”. 

Nessa balança, a vitória em campo projetada com a escolha de um técnico tão vencedor pesava mais nas contas de um clube que tem uma dívida de R$ 1 bilhão e precisava ganhar muito dinheiro para se manter em pé. A questão moral nesse ponto não pareceu pesar num primeiro momento para os patrocinadores. Entra em campo a pressão da imprensa e sociedade para que os entendimentos corretos sob o tamanho do problema ganhe uma luz correta. 

Cuca caiu: uma vitória com gol contra

No fim da noite de ontem, o técnico Cuca pediu desligamento do Corinthians. Num primeiro olhar, podemos entender que foi uma vitória da sociedade nessa caminhada em defesa dos direitos essenciais. Simbolicamente essa queda mostra o quanto a temática do respeito a mulher ganhou força e deu alguns passos na busca pelo entendimento de que não se pode “passar pano” para algo tão brutal, entretanto as motivações não foram nobres.

Infelizmente em uma sociedade como a nossa, que a ignorância se faz presente nos entendimentos corretos dos problemas, assistimos na arena das redes sociais uma cena comum que também precisa ser melhor tratada por nossa justiça que foram as ameaças e palavras de ódio contra a família do técnico e contra o próprio Cuca. A queda dele não se deu apenas pela pressão da sociedade e imprensa. Na verdade, a imprensa passou mais de três décadas deixando esse tema de lado. 

Em uma publicação no Twitter, o repórter Eric Faria comentou: 

“Nós, homens, jornalistas esportivos fracassamos. E não adianta se esconder com 'ah… o mundo era outro'. Estupro sempre foi crime. Hoje. Ontem. Na década de 80 e durante quase 40 anos, nós convivemos com esse fato e não fizemos nada. Convivemos com Cuca que já havia sido condenado em 1989. Eu nunca perguntei ao Cuca nada sobre isso. Também nunca fui cobrado pra fazer. E a sociedade espera que jornalistas coloquem luz sobre fatos. Investigue. Mostre. Reporte. E não fizemos. Então, eu só tenho que admitir que errei como jornalista.” 

Infelizmente, nessa balança pesou o medo de um julgamento de ódio nas redes e, o recado que o Corinthians e todo seu ecossistema poderiam ter passado para a sociedade foram trocados por um medo legítimo do técnico de não sofrer atos de violência física contra os seus. Falhamos todos.

Os títulos serviram de escudo, pois a vitória do nosso time como refresco de poder em nossa alma foi mais forte que a justiça verdadeira. 

O que não podemos esquecer é que Cuca tem uma pena a cumprir. Se lá na Suíça não aconteceu no tempo certo, na justiça moral ela parece que começou a ter seus primeiros dias contados.

Em um resumo triste, se você tem muita grana, a sociedade ainda engole algumas atrocidades. Existe uma espécie de proteção moral onde o dinheiro consegue criar super poderes aos criminosos de alto poder aquisitivo.

Para empresas a situação é parecida, pois sua marca terá caminhos para se safar por meio de campanhas milionárias que ajudam a reerguer sua imagem. Se a educação da sociedade evolui, o preço da imagem limpa sobe o sarrafo de hombridade social das entidades.

No Brasil a defesa do direito da mulher ainda sofre, basta ver os números de feminicídio no país. Situações como a do técnico Cuca, existem pois essa dor não ganha o seu devido eco e, os ganhos esportivos projetados na hora da contratação de um técnico tão gabaritado foi maior que a defesa do direito à justiça de uma menina de 13 anos e de todas as meninas torcedoras de um país que decidiu normalizar essa situação.

Se sua filha vai ao estádio e curte futebol, tenha certeza que ela não teria coragem de visitar atletas profissionais em um hotel, sozinha, pois a normalização do crime contra a mulher cria sim esse medo.

Enquanto isso não mudar, o valor de 51,1% da população brasileira no esporte bretão, que compreende a parcela de mulheres no Brasil, ainda terá esse gap de receitas que irá crescer na proporção do respeito. Infelizmente, enquanto a conta moral não tornar isso negativo, esse crime ainda será aceito, pois o peso do outro lado da balança acontece em forma de gols. Esse é o país do futebol?

Nunca foi apenas futebol. Nunca será.