Quem são os responsáveis pelo desmonte do Estado brasileiro?

Foto: Agência Brasil

À medida que os grupos de trabalho da transição de governo foram apresentando seus relatórios, com o diagnóstico da situação que encontraram em cada Ministério, em cada área da administração pública, a palavra que mais se repetiu para nomear o que encontraram foi “desmonte”. Como o próprio Jair Bolsonaro afirmou, em visita aos Estados Unidos, seu governo teria que destruir muita coisa, ele faria um governo deliberadamente de paralisia e desmontagem dos principais programas, políticas, instituições e obras dos governos anteriores, tanto por motivos ideológicos, quanto para atender aos interesses dos grupos que o levaram ao poder.

Se observarmos as áreas em que o desmonte foi mais agressivo, identificaremos, claramente, os interesses dos principais grupos e setores que apoiaram e financiaram a subida de Bolsonaro ao poder. É importante que, no momento que formos atribuir responsabilidades no que tange a esse criminoso e deliberado processo de destruição da máquina pública, não apontemos apenas para aqueles que ocuparam cargos no Estado, mas também para os setores sociais que foram beneficiados ou que pensam ter sido beneficiados pelo desmantelo das políticas públicas.

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“O mercado”, essa entidade sem rosto que pretende sempre dirigir a economia do país, submetendo a administração pública a seus interesses privatistas, composto pelas elites empresariais, notadamente aquelas ligadas ao setor financeiro, foi responsável pelo financiamento do golpe contra Dilma Rousseff e pela ascensão de Bolsonaro. Representados pelo banqueiro e rentista Paulo Guedes, apoiaram deliberadamente o desmonte das políticas de caráter nacional-desenvolvimentista, dos governos petistas, para imporem a agenda neoliberal que, justamente, tem como item número um em sua cartilha o desmonte do Estado através de sua privatização progressiva, com a entrega de setores estratégicos como a produção e distribuição de energia, petróleo, água, nas mãos da iniciativa privada, que se apropria, assim, a preços vis, de toda a poupança pública que foi feita durante anos e investida na montagem das empresas estatais privatizadas.

O desmonte da legislação trabalhista e previdenciária, precarizando as relações de trabalho e a própria vida das pessoas, permitindo o aumento da taxa de lucro, foi um dos itens da agenda golpista, continuada no governo Bolsonaro. O desmonte da política de valorização do salário-mínimo, permitiu o pagamento de salários cada vez mais baixos.

O “mercado” tem suas impressões digitais na adoção do famigerado teto de gastos que, a pretexto de garantir responsabilidade fiscal - o que ocorreu em todos os anos da administração petista -, engessou a capacidade de investimento e endividamento do Estado, praticamente o retirando do papel de agente indutor do desenvolvimento econômico, daí a economia não ter crescido esses anos e a máquina pública, mesmo com o furo do teto muitas vezes, por causa da pandemia e por interesses eleitorais, esteja praticamente paralisada.

A independência do Banco Central retirou do controle do governo democraticamente eleito a política monetária colocando-a nas mãos dos próprios representantes dos interesses privados (a raposa tomando conta do galinheiro). A burguesia brasileira demostrou, mais uma vez, sua insensibilidade para as questões sociais, patrocinando o desmonte das políticas públicas voltadas para os mais pobres, mesmo que elas tenham causado prejuízo a setores como o industrial e da construção civil.

O desmonte da Petrobras, com a venda a preço de banana de seus ativos, o abandono da construção de refinarias, da política de compras nacionais, a adoção de uma política de preços que dolarizou os valores dos combustíveis, beneficiando apenas seus acionistas privados, foi um dos principais motivos do golpe e do apoio a extrema-direita pelo “o mercado”.

O agronegócio é outro setor que patrocinou todo o desmonte das políticas ambientais, se associando a setores criminosos como o garimpo ilegal e a extração de madeira clandestina. Apoiou entusiasticamente o desmonte de toda a estrutura de fiscalização de práticas como a do trabalho escravo e da invasão de terras indígenas e quilombolas. O desmonte da política indigenista, da política de reforma agrária, da própria estrutura de vigilância da Amazônia visou atender o setor mais predatório do agronegócio. Tendo uma representante direta no Ministério da Agricultura, patrocinou a aprovação em massa e sem critério do uso de agrotóxicos e fertilizantes.

A visão tacanha e antinacional, imediatista de setores do agronegócio fez eles apoiarem um governo que isolou o país internacionalmente, desmontando a secular política externa brasileira, hostilizou por motivos ideológicos os principais compradores de seus produtos, como a China e que abandonou um órgão como a Embrapa, cujas pesquisas são responsáveis pela modernidade e competitividade internacional do agronegócio brasileiro. Foi um dos setores que esteve por trás da liberação irresponsável da venda de armas no país, sob o pretexto de se defenderem das invasões patrocinadas pelo MST. A destruição das políticas voltadas para a agricultura familiar, embora ela não compita com o agronegócio, também tem as digitais desse setor.

As organizações médicas também têm suas digitais no desmonte da máquina pública, notadamente no setor de saúde. Os interesses privatistas ligados a esse setor sempre estão dispostos a apoiar a fragilização do Sistema Único de Saúde, visando monopolizarem o atendimento a saúde da população. O fim do programa Mais Médicos, do programa Brasil Sorridente e a própria destruição do Farmácia Popular tem as digitais dos setores médicos que só querem lucrar às custas da saúde das pessoas.

O mais estarrecedor foi ver instituições médicas e profissionais dessa área apoiar e dar amparo as políticas negacionistas durante a pandemia de Covid-19, setores que, enquanto seus colegas tentavam salvar vidas, patrocinavam verdadeiras experiências de cunho nazista com pacientes desesperados. Médicos e entidades que deram aval ao charlatanismo do chefe do governo, receitando remédios sabidamente inócuos, mas que fez a fortuna dos laboratórios produtores desses medicamentos. Setores que apoiaram a própria paralização da expansão do ensino de medicina no país, tudo em nome do privilégio e do monopólio.

Os evangélicos, notadamente alguns setores mais midiáticos, assim como os católicos mais conservadores estão por trás do desmonte de toda as políticas de cidadania e direitos humanos no país. O Ministério ocupado por Damares Alves serviu como lócus de produção de uma propaganda ideológica contra as pautas feministas, dos movimentos LGBTQIA+, dos movimentos antirracistas, de toda a agenda dos direitos humanos. Um governo fascista que se elegeu com um discurso contra os direitos humanos esvaziou completamente o setor, com recursos cada vez mais escassos, paralização de todos os programas, extinção dos órgãos colegiados e utilização de recursos em compras no mínimo estranhas como milhares de filtros de água e uma empilhadeira.

A destruição do Estado laico, o uso da máquina pública para o benefício da expansão de denominações religiosas, com recursos de Ministérios como o da Educação sendo destinados até a construção de templos, a ingerência de pastores em vários Ministérios, inclusive na montagem do esquema do orçamento secreto no Congresso Nacional, uma das fontes de fragilização do Estado, inclusive do ponto de vista orçamentário, deixa claro que esse setor deve explicações a sociedade brasileira quando se trata desse descalabro que estamos assistindo.

As Forças Armadas, assim como setores da Justiça e o Ministério Público, devem explicações à sociedade brasileira. Como eles, sendo instituições basicamente de Estado e não de governo, se partidarizaram, fecharam os olhos, quando não participaram de seguidos atentados ao Estado democrático de direito e se assenhorearam de amplos setores da máquina pública, que agora se mostra desmontada e precarizada. As Forças Armadas devem explicações ao povo brasileiro por sua participação direta num governo que precarizou a própria segurança nacional, que armou a população civil deliberadamente, que patrocinou a formação de milícias privadas, que retirou delas próprias o controle sobre a posse de armas no país. Um governo que permitiu privilégios, mordomias e mamatas para militares e, ao mesmo tempo, paralisou os principais programas estratégicos de defesa e a compra de equipamentos para as tropas, envolvendo as instituições diretamente em seu desgoverno.

Por motivos ideológicos apoiaram o desmonte em setores como a cultura, a ciência e tecnologia e a educação, setores sempre vistos como inimigos, de esquerda, subversivos, comunistas, uma guerra cultural baseada nessa retórica anticomunista, mofada, de uma Guerra Fria que acabou faz décadas e que condena o país ao atraso, ao subdesenvolvimento, a pobreza, a desigualdade, a violência. Por ressentimento, à medida que não reconhecem os crimes cometidos pela ditadura militar, que teimam em exaltar como um evento que salvou a democracia, ficaram do lado de um presidente que bate continência para bandeiras estrangeiras e tem claras simpatias pelo nazifascismo (que as Forças Armadas brasileiras combateram na Segunda Guerra Mundial).

Mais uma vez, ao abandonarem o seu papel constitucional, ao se imiscuírem na vida política do país, como se fosse uma força tutelar, um poder moderador, estimulando um golpe de Estado contra uma presidenta eleita democraticamente e tornando-se um verdadeiro partido ao patrocinar a candidatura de Bolsonaro e participarem, em grande número, de seu desastroso e corrupto governo, as Forças Armadas saem com sua imagem pública arranhada e, mais uma vez, distantes do apreço de uma boa parte da sociedade, a não ser dos setores golpistas e antidemocráticos, dos bolsonaristas, o que não deveria ser motivo de orgulho e júbilo.

Teremos um longo caminho pela frente para podermos remontar o Estado brasileiro, as instituições e as finanças públicas que parecem ter sido atacadas por uma verdadeira nuvem de gafanhotos. Mas esses gafanhotos, essas forças predadoras do Estado brasileiro, de suas finanças e de seus ativos, têm nome e rosto e deles devemos cobrar as responsabilidades públicas. Ao defenderem seus interesses corporativos e privados destruíram verdadeiros patrimônios coletivos e devem ser responsabilizados por isso.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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