O café com leite da violência e do ódio: o cardápio que querem nos servir

Legenda: Romeu Zema, governador de Minas Gerais
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Com a principal liderança do fascismo, da extrema-direita, inelegível, com Bolsonaro fora do páreo das eleições de 2026, começa a corrida para aqueles que querem ocupar o seu lugar, para aqueles que querem assumir a agenda de violência, ódio, conflito e preconceito, que o capitão tão bem soube vociferar e encarnar. Com mais ou menos capacidade de mimetizar o mito, com mais ou menos capacidade de assumir o lugar do politicamente incorreto, de assumir o lugar de sujeito de discursos e prática anti-civilizatórias, de parecer ou ser ignorante e mentecapto, alguns personagens tem tentado ocupar o vácuo deixado por Bolsonaro, com a complacência e com a colaboração mesma da eterna grande imprensa brasileira, aquela que representa os interesses dos mais ricos e que parecem não suportar a possibilidade desse país deixar de ser uma colônia, com traços escravistas e senhoriais.

Numa curiosa reedição da chamada política do café com leite, aquela que era dominante na chamada República Velha ou Primeira República, o período compreendido entre a Proclamação da República, em 1889, e o movimento de 1930, que significava o controle político do país pelas oligarquias cafeeiras e pecuárias dos estados de São Paulo e Minas Gerais, os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e de Minas Gerais, Romeu Zema, têm procurado ocupar o vazio político deixado pela cassação dos direitos políticos de Jair Bolsonaro, buscando se cacifarem para serem os candidatos a presidente da República da extrema-direita fascista nas próximas eleições. Para isso, cada um a seu modo, têm tomado atitudes, têm levado a efeito uma agenda de governo, têm feito discursos, repercutidos pela grande mídia, sempre em busca de um concorrente para as forças de esquerda no país, que visam agradar a parcela do eleitorado que votaram em Bolsonaro, embora parte dos eleitores do mito, como mostram as pesquisas de opinião, vêm aderindo ao governo Lula, inclusive com figurões de destaque do mundo bolsonarista renegando o voto que deram o ano passado.

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O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que pode ser considerado um bolsonarista de primeira hora, embora tenha servido o governo da presidenta Dilma Rousseff como diretor-executivo e diretor-geral do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT), pois foi Ministro de Infraestrutura e apoiou Bolsonaro nas eleições de 2018, parece querer encarnar uma versão mais light, mais palatável do capitão destemperado. Suas atitudes, como o apoio que forneceu a aprovação da reforma tributária, têm, por vezes, sido consideradas dúbias, quando não de traição, por parte do bolsonarismo mais radical. No entanto, seu apoio explícito à chacina patrocinada pelas forças policiais no Guarujá, um gesto de pura vingança irracional, de violência e ódio, de preconceito contra as comunidades mais carentes, onde todos são a priori considerados bandidos, mesmo crianças e adolescentes, notadamente se forem negros, mostra como ele está pronto para regar a semente do fascismo entre nós. Apoiar forças policiais que, ao invés de usar de inteligência e investigação, para chegar aqueles que assassinaram um de seus membros, parte para ações indiscriminadas de matança, feitas sob o manto da clandestinidade, mostra que sua visão de mundo não está distante daqueles que fazem discursos contra os direitos humanos e que considera defensor de bandidos todos aqueles que advogam que todo ser humano tem direitos, mesmo o pior deles. Abrirmos mão do uso da lei, do direito e da justiça, para todos os seres humanos, mesmo os mais violentos, partir para a lei do mais forte, do olho por olho, dente por dente, é cairmos na barbárie, regredirmos em valores civilizacionais.

Na mesma semana em que deixa as forças policiais burlarem o uso de câmeras, pois afinal sempre se mostrou contra elas, o que resultou num aumento de 26% nas ações letais por parte das forças policiais, em seus primeiros seis meses de governo, Tarcísio de Freitas anunciou o fim da distribuição de livros para as escolas paulistas, prometendo reduzir o material didático a versão digital. A aversão à educação, às escolas e aos professores é a mesma que assistimos nos tristes anos de Bolsonaro. Sua decisão de manter funcionando as escolas cívico-militares, apesar da decisão do governo Lula, de não mais apoiá-las com verbas federais, mostra a continuidade da política de produção, via educação, de subjetividades facistoides, de corpos e almas disciplinadas e dóceis, subservientes e alienadas em relação a sociedade em que vivem. O esvaziamento completo das políticas públicas voltadas para as mulheres e de direitos humanos deixa claro que, assim como no governo bolsonarista, estamos diante de uma gestão misógina, machista, que vem para agradar o eleitorado masculino, aos homens incomodados com a ascensão social das mulheres, com a conquista de direitos por parte das minorias e por parte dos negros. O fato simbólico de ter retirado o nome de Paulo Freire de uma estação de metrô e dado a ela o nome do sanguinário bandeirante Fernão Dias e ter assinado uma lei que homenageia o coronal Erasmo Dias, uma das figuras comprometidas com a repressão e a tortura, durante a ditadura militar, visou agradar não só as forças de segurança, já que o coronel era um militar estadual, as Forças Armadas, como todos aqueles que no obscuro mundo bolsonarista apoiam torturadores ou negam que o golpe de 1964 deu origem a uma ditadura, que sequestrou, torturou e matou cidadãos e cidadãs brasileiras.

Mas, nessa corrida para quem se coloca no lugar de Bolsonaro, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, parece estar algumas jardas à frente, notadamente no quesito da retórica beligerante, do cultivo do ódio e do preconceito. Ao contrário de Tarcísio de Freitas, que tem procurado manter uma relação cordial com o governo federal, o governador Romeu Zema, saiu da primeira reunião de governadores com o presidente da República, fato que não acontecia há seis anos, atacando Lula com o uso, inclusive de fake news, ou seja, de mentiras, o que é uma prática comum nas hostes bolsonaristas. Ele foi o único governador a endossar publicamente a versão bolsonarista de que o ataque terrorista aos três poderes, no dia 08 de janeiro, aconteceu porque o governo federal fez “vistas grossas”, visando se beneficiar politicamente com o episódio. Fazendo um segundo governo desastroso em Minas Gerais, sem nenhuma realização de monta, a não ser perseguir professores, funcionários públicos, beneficiar grandes empresas, ele não tem pejo de culpar um governo que está aí há sete meses pelo desastre administrativo de sua gestão. Tendo se mantido na surdina durante o primeiro turno das eleições de 2022, autorizando, inclusive, que em dadas regiões do estado se propagandeasse a chapa Lulema, uma vez reeleito, desceu do muro, no segundo turno, e apoiou, explicitamente, Bolsonaro, colocando a máquina estadual em ação visando reverter a vantagem que Lula tivera em Minas Gerais, no primeiro turno.

Eleito por um partido que embora se chame Novo, realiza a mais velha política, e tem uma pauta econômica radicalmente neoliberal, defendendo a privatização de tudo e o chamado enxugamento do Estado, o tal Estado mínimo que é bom para os ricos e poderosos que dele não precisa e almejam, sempre, terem suas vidas empresariais pouco fiscalizadas, para poderem explorar o máximo os trabalhadores, os submetendo, quando possível, à situação análoga a de escravizados e não pagarem impostos, necessários para sustentar a máquina pública. No dia de comemoração da Inconfidência Mineira, no dia de Tiradentes, no 21 de abril passado, em discurso na cidade de Ouro Preto, o governador mineiro inovou e causou ao defender a administração colonial portuguesa, a repressão ao movimento separatista e Joaquim Silvério dos Reis, que delatou o movimento. Ele aproveitou a data para condecorar com a medalha da Inconfidência os traidores da pátria Michel Temer e Sérgio Moro, gesto que não pode ser acusado de incoerente, já que na oportunidade disse que Tiradentes é que traíra o país e não o famoso Silvério dos Reis. Foi no desgoverno Zema que ocorreram as maiores tragédias ambientais e humanas do país, já que fechou os olhos para a atuação das grandes mineradoras no estado: assim como Bolsonaro tem nas suas costas a morte de pelo menos 400 mil pessoas, por puro descaso, e Tarcísio já coleciona 16 mortes só no Guarujá, Zema pode se orgulhar e se candidatar para o lugar do mito, graças as 200 mortes no desastre de Brumadinho, mais 17 mortes no rompimento da barragem de Fundão em Mariana.

Mas, Zema literalmente se superou essa semana, propondo uma espécie de retorno a política do café com leite, agora de forma ampliada, incluindo todo Sul e o Sudeste, cardápio regado a preconceito regionalista, incentivo ao ódio e a violência separatistas. Indignado com um item previsto na lei da reforma tributária, que cria um fundo para o combate a miséria, que carreará recursos para as regiões mais pobres do país: Norte, Nordeste e Centro-Oeste, o candidato a candidato do fascismo, em entrevista ao notório jornal O Estado de São Paulo, aquele que militou a favor de todos os golpes de Estado ocorridos no período republicano, sugeriu que os estados que representam 56% da população do país se unam para fazer frente as regiões que, segundo ele, são menos populosas e que estariam sendo beneficiadas pelas políticas de inclusão social do governo Lula. Assim como Bolsonaro, que passou seus quatro anos de governo hostilizando os governadores do Nordeste e de alguns estados do Norte, veiculando preconceito contra os nordestinos e nortistas, o candidato a ocupar o lugar do mito parece já ter feito, de saída, sua opção pelos mais ricos que, aliás, é totalmente coerente com a atuação dos parlamentares do Novo no Congresso Nacional, eles são a bancada da plutocracia, da Faria Lima, dos interesses internacionais aqui no país. São esses que Zema representa, embora se diga preocupado com os pobres moradores de comunidades do Sul e do Sudeste do país, como se esses também não fossem beneficiados pelas políticas sociais do governo federal.

Mas é de se esperar que os candidatos a sucederem Bolsonaro continuem alimentando o discurso do conflito e do ódio, do preconceito, inclusive contra a origem geográfica e de lugar, o preconceito regionalista, na esperança de arrebanharem para suas candidaturas os 56% de votos das duas regiões mais ricas do país. O mais curioso nisso tudo, é que o candidato a candidato do fascismo, esquece que a região Centro-Oeste, não convidada para a nova política café com leite, embora seja a região com maior percentual em criação de bois no país, foi o segundo maior colégio eleitoral do bolsonarismo, depois dos estados do Sul. Me parece que a mobilização contra o restante do país, empreendida pelo insólito governador mineiro, servirá apenas para manter o clima de tensão, de desinteligência, de conflito, que agora quer transformar num conflito territorial, intrarregional. Mas se o país foi capaz de, em 2018, eleger alguém com as capacidades intelectuais e valores morais de Bolsonaro, é bom ficarmos alertas, senão depois teremos que chorar não apenas o leite derramado, mas o café também.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.