Lula criticou o identitarismo?

Foto: Ricardo Stuckert / PR

Em seu discurso, proferido na última sexta-feira, quando da filiação de Marta Suplicy ao Partido dos Trabalhadores, visando integrar a chapa, como vice-prefeita, de Guilherme Boulos à Prefeitura de São Paulo, o presidente Luís Inácio Lula da Silva, de forma enfática, fez uma crítica aos critérios que viriam sendo utilizados pelo PT para escolher seus candidatos e candidatas a vereadores e vereadoras. Lembrando que, em todas as pesquisas feitas acerca de preferência partidária no país, o PT é indicado por, pelo menos, vinte por cento da população, Lula disse ser inaceitável que o partido tenha eleito, em 2020, apenas o equivalente a cinco por cento do número de edis municipais. Ele criticou o que chamou de candidatos de si mesmo, aqueles que são lançados candidatos apenas porque demonstram interesse, segundo ele, de ver sua imagem sendo exibida e popularizada pelos meios de comunicação. E afirmou ainda que alguém não podia ser escolhido em convenção partidária para ocupar uma vaga na lista de candidatos a vereança somente pelo fato de ser mulher, de ser negro, de ser indígena.

Isso foi o bastante para que os principais órgãos de comunicação da esquerda nas plataformas digitais abrissem manchete de que Lula teria criticado o que vêm chamando de identitarismo. Lula seria agora um militante anti-identitário, o que é curioso para alguém que, no mesmo discurso, falou longamente de seu passado e de sua identidade operária, de sua identificação com os mais pobres e com os trabalhadores por ter sido um menino que saiu da vila de Caetés, em Pernambuco, aos nove anos de idade, para não morrer de fome, por ter sido um operário de fábrica, o que também foi o núcleo de seu discurso proferido antes do evento de filiação da ex-prefeita de São Paulo, quando, no início da tarde, visitou a fábrica da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, para o anúncio, por parte da empresa, de novos investimentos no país. Aí recordou de seu passado de dirigente sindical, experiência que teria dado a ele sua consciência política e a régua e o compasso na vida pública. O fato de Lula privilegiar a sua identidade de classe faz dele um anti-identitário? Desde quando existe uma identidade mais importante do que outras na hora de se lançar no mundo da política? Quem raciocina que a identidade de classe é mais fundamental do que outras, que ela ocupa uma espécie de vértice da pirâmide identitária por estar relacionada com o mundo material, o mundo da produção, o mundo da reprodução social, é que saem com essa conversa de identitarismo, defendem uma dada identidade como aquela que deveria ser a única.

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Mas será mesmo possível separar Luís Inácio Lula da Silva de sua identidade de origem geográfica e de lugar? Sempre que vem ao Nordeste, e em muitas outras ocasiões, ele faz questão de se afirmar nordestino e pernambucano. Sua imagem como homem público, inclusive muitos dos preconceitos com que tem que lidar, não se deve apenas ao fato de ter sido operário ou líder sindical, mas pelo fato de ser nordestino, de ser “analfabeto”, “sem diploma”, “sem curso superior”, outra penca de identidades que o definem. Seu sucesso eleitoral na região, o fato de ser imediatamente identificado como sendo um dos nossos, se deve ao fato de ter nascido nesse espaço e de ter feito uma trajetória de vida muito parecida com milhares de pessoas nele nascidas. Ele reivindica sua identidade de nordestino, quando é interessante, o que ele não fez, por exemplo, no discurso que proferiu, na manhã da mesma sexta-feira, na cidade de Santos, quando foi a comemoração de cento e trinta e dois anos do porto daquela cidade e anunciar, junto com o governador Tarcísio de Freitas, a construção do túnel Santos-Guarujá, nessa ocasião ele assumiu outra identidade, a de retirante, de migrante e, sobretudo, de ex-morador daquela região da Baixada Santista, onde sua mãe, Dona Lindu, acompanhada dos oito filhos, foi ao encontro do esposo, que encontrou como chefe de outra família. Essas identidades são menos materiais do que a de classe operária e de militante de movimento social? Todas elas não partem da materialidade de suas carnes, de seu corpo para poder se sustentar e se efetivar? Ele possui, por exemplo, uma outra identidade infamante, sempre utilizada pelos seus adversários e desafetos, o de “sem dedo”, de “nine”, de deficiente físico, inseparável de sua condição carnal, da mutilação que sofreu do dedo mindinho da mão direita, esmagado por uma prensa, por ter cochilado de exaustão durante um expediente noturno na fábrica.

Será que Lula esquece que o fato de ser homem, de ser heterossexual, de ser tido como masculino, lhe trouxe e traz enormes vantagens no exercício da vida pública, não apenas como liderança política, mas também na vida laboral? Não foi ele, afinal, que em seu primeiro ano do atual mandato, cumprindo um acordo feito com Simone Tebet, para que ela se incorporasse a sua campanha no segundo turno das eleições de 2022, enviou ao Congresso proposição de lei tornando obrigatória a equiparação salarial entre homens e mulheres, quando exercerem a mesma função? Isso não é reconhecer que o mundo do trabalho, que, inclusive, a classe trabalhadora é generificada, é atravessada pelas identidades de gênero, que produzem hierarquias de acesso a empregos e funções, a cargos e tipos de trabalho ou modalidades de tarefas e especializações e, sobretudo, hierarquias de poder e econômicas, de reconhecimento e remuneração? Se ele não lembrar das marcações de gênero creio que sua esposa Janja, uma militante feminista, o lembrará todos os dias. Ele mesmo não é o primeiro a elogiar o fato de que o PT tem uma presidenta mulher, o fato do partido, em seu funcionamento e estruturas internas, obedecer à paridade de gênero? Será mesmo que ele não levou em conta as questões de gênero ao montar seu ministério, embora na primeira desmontagem foram os pescoços de ministras que foram decapitados, fruto, justamente, do funcionamento ainda machista da política? Quantas vezes não o vemos, em cima dos palanques, condenar enfaticamente a violência contra as mulheres (afinal ele é o presidente que sancionou a Lei Maria da Penha), a discriminação de gênero no mercado de trabalho e no exercício da vida pública?

O presidente que, enquanto estava no cárcere em Curitiba, se dedicou a ler obras acerca do passado escravista brasileiro, que saiu de lá relacionando a escravidão com as terríveis condições sociais do país, tomando o racismo estrutural como a principal causa das desigualdades no país, será mesmo alguém que acha que a identidade étnica, que a identidade racial, que a identificação com uma dada categoria de cor não teria importância política? Por que será então que fez questão de trazer pessoas negras para seu ministério e que, assim como criou o Ministério das Mulheres, substituindo a antiga secretaria, criou o Ministério da Igualdade Racial e Combate ao Racismo e o Ministério dos Povos Indígenas, uma das promessas mais inovadoras e mais festejadas de sua campanha vitoriosa, trazendo, de forma pioneira, lideranças indígenas para ocupar cargos no primeiro e segundo escalão do governo? Não foi ele que aperfeiçoou e expandiu a lei de cotas, implantou o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira nas escolas e assinou a lei contra a discriminação e perseguição religiosas? O presidente anti-identário dando materialidade institucional aos chamados movimentos identitários ou ao identitarismo?

Estaria Lula militando numa contradição? Esse político inexperiente que precisa da orientação dos “especialistas” que enxameiam na mídia dita progressista ou na grande mídia teria, finalmente, ouvido os apelos dos luminares da verborragia digital e impressa? E para completar, ainda traz para seu ministério a estrela maior da militância ambiental, ecológica, verde, mais uma identidade periférica, sem importância, já que, parece que classes podem existir e o mundo do trabalho pode dar centralidade a atividade política sem a materialidade, afinal secundária, da terra, do planeta, das florestas, dos mares e ares. Tais coisas só cabe na cabeça de indígenas, não daqueles que provém, orgulhosos, do racionalismo europeu, daqueles que seguem pensadores que, em plena vigência da escravidão nas colônias, em pleno pós-revolução negra haitiana, falam de dialética entre senhor e escravo como abstração conceitual ou que argumenta que não existiria mercadoria falante e pensante. Mas isso já é coisa de outro movimento identitário, coisa de pós-modernos, o movimento nomeado de decolonial.

É verdade que Lula não se sente muito à vontade em falar de temas ligados as homossexualidades e transexualidades, raramente as nomeia entre aqueles cujas identidades minoritárias deveriam ser objeto de políticas públicas, talvez por causa das gafes e escorregadelas que ocorreram no passado, que lhe custaram muitas críticas e seu machismo ainda não de todo resolvido, ou mesmo pelo pouco conhecimento do assunto. Como costuma falar muito a partir de sua experiência pessoal e tenha, inclusive, uma visão muito tradicional e normativa de família, ele não parece ficar à vontade para tratar desse tema em público. Mas, não foi no seu governo que se realizou a primeira conferência nacional para discutir direitos e políticas públicas voltadas para a população LGBTQIA+? Seu ministério e, inclusive, a presidência do principal banco público do país, não contam com a presença de mulheres lesbianas que fizeram questão, inclusive, em suas tomadas de posse nos cargos, de nomear as suas companheiras, sem que houvesse qualquer proibição por parte do alto mandatário do país? Se em seus discursos não cansa de lembrar que a cor da pele no Brasil pode representar a diferença entre ficar vivo e morrer, em condenar a matança da juventude negra, também faz questão de recordar que somos o país onde mais se mata mulheres, homossexuais e transexuais no mundo, mais do que naqueles em que as homossexualidades ainda são consideradas crime e passível de pena de morte. Assim como também lembra que o racismo, a homofobia e a transfobia são uma das principais causas do acosso e da evasão escolar, tanto quanto a pobreza e a condição social.

Na verdade, o cerne da fala de Lula foi completamente deturpado e enviesado por aqueles que fazem esse discurso, muito semelhante ao da extrema-direita, de condenação da chamada militância identitarista. O que Lula afirmou foi que o PT não poderia continuar escolhendo pessoas sem representatividade social, sem uma base social efetiva de sua atuação política. E quem disse que base social de atuação política, que representatividade social só se dá na luta sindical, pela terra, pela melhoria das condições de trabalho, moradia, transporte, na luta por direitos trabalhistas? O que Lula disse é que não basta se dizer negro para justificar uma candidatura a vereança, mas duvido que ele não considere legítima a candidatura de um militante do movimento negro, contra o racismo e o preconceito racial, de uma militante feminista, da luta das mulheres ou do movimento LGBTQIA+. Eu ouvi todo o discurso e não me parece que ele tenha falado de identitarismo, o que ele falou foi de ausência de representatividade, de efetiva inserção na vida pública, na militância política de base, de candidatos e candidatas às vagas do legislativo municipal. O que ele cobrou foi a escolha de militantes de base, seja de que base fosse. Fui um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, na cidade de Campina

Grande, e a novidade desse partido, desde sua fundação, foi congregar militantes de distintas lutas (sindical no campo e cidade, militância nas pastorais e nas Comunidades Eclesiais de Base, nas lutas das organizações de bairro, por moradia, transporte, saúde e educação públicas, por militantes ambientalistas, ligados ao movimento negro e homossexual, por militantes feministas, nos partidos tradicionais da esquerda, militantes nos movimentos estudantil, de docentes e servidores públicos). Presidi o primeiro Grupo de Trabalho sobre minorias no partido, uma grande novidade. Se Lula tivesse, como dizem os preconceituosos de plantão, os classistas e ditos revolucionários (muitos estão mais para stalinistas e fascistas) , condenado o identitarismo, ele teria rejeitado a história do próprio partido, aquilo que o faz ser um dos partidos mais plurais, democráticos e diversos do país e, por isso mesmo, o que mais tem, verdadeiramente, enraizamento na sociedade civil. Cabe transformar esse enraizamento em candidaturas efetivamente representativas de um coletivo e não da vontade pessoal, do eu sozinho, do ego de cada postulante, foi isso que o presidente falou do alto de sua sabedoria política de quase cinquenta anos.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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