Ao justificarmos o terrorismo naufragamos ética e politicamente

Foto: MAHMUD HAMS / AFP

Os recentes atentados terroristas perpetrados pelo grupo Hamas, contra o Estado e a população de Israel, mais uma vez provocaram manifestações desencontradas entre as forças políticas que se autonomeiam de progressistas ou de esquerda. Não é a primeira vez que, diante de ações de grupos terroristas, setores ou pessoas identificadas com a esquerda manifestam aprovação e tentam justificar esses acontecimentos, questionando, inclusive, sua denominação como atos de terror. De uma maneira seletiva, se denuncia ações terroristas, quando elas partem de grupos de direita ou de extrema-direita, como ocorreu no dia 08 de janeiro desse ano, quando a horda bolsonarista assaltou violentamente a sede dos três poderes da República, mas se manifesta aprovação e até satisfação quando ocorrem eventos como o atentado contra o World Trade Center, nos Estados Unidos, no dia 11 de setembro de 2001.

A política israelense em relação aos palestinos é indefensável, podemos dizer que estamos diante de um Estado que promove uma política de terror permanente contra as populações da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. Condenar o terrorismo israelense não implica, no entanto, aceitar e justificar os atos terroristas perpetrados pelas organizações palestinas. Ao contrário, a condenação do terrorismo israelense, implica, para mim, em também condenar as ações terroristas dos grupos árabes mais radicais. Embora seja inegável a disparidade de poder financeiro, militar, bélico e estratégico entre o Estado de Israel e as forças palestinas, que são financiadas por países como o Irã (a quantidade de foguetes, de mísseis disparados numa só manhã e a sofisticação do armamento usado pelas milícias palestinas que invadiram Israel relativiza, um pouco, essa disparidade), que muitas vezes é utilizada como justificativa para o uso de ações terroristas, o que faria do terror a arma dos fracos, me parece um argumento indefensável do ponto de vista ético e até mesmo político.

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Do ponto de vista ético, o terrorismo implica a desumanização do oponente, a transformação do outro em carne nua, carne matável, seviciável, em presa de operações que, reversivamente, desumaniza quem as realiza. Não tem nem sentido, por exemplo, dizer que o terrorismo animaliza, porque os animais são incapazes do cálculo frio e do planejamento racional que há na ação terrorista. Toda ética soçobra diante do deslimite da ação de terror. Ela visa, simplesmente, a aniquilação de um outro genérico e sem rosto, um qualquer um que é, ao mesmo tempo, um ninguém. O terrorismo lida com a construção de um inimigo homogêneo e sem rosto. Como dizia o filósofo francês, de origem judaica, Emmanuel Levinas, é o rosto que confere humanidade e dignidade ao humano. É no rosto do outro que nos reconhecemos e os reconhecemos como partícipes da mesma humanidade. Não se mira o rosto de quem se mata impunemente. As vítimas do terrorismo são uma massa sem rosto, são vidas sem singularidade, sem identidade, sem dignidade, tudo aquilo que nos torna humanos. O ato de terror não pode favorecer a construção de qualquer forma de humanidade, não pode fundar qualquer tipo de sociedade humana, pois seu gesto primeiro é o da desumanização, da transformação do outro em alvo, em objeto de uma ação estratégica, em meio de aferir um fim que é o da destruição de uma dada ordem.

Mesmo quando essa ordem está fundada na injustiça, como é o caso da construção de um Estado único israelense na Palestina, com a invasão e expulsão sistemática da população árabe, levada a viver em situação de miséria e permanente opressão, encurralados por muros e todo um aparato de repressão, não será a ação terrorista que será capaz de fundar uma situação de justiça, pois se o fundamento de todo direito deve ser o reconhecimento da condição humana do outro, o terrorismo é incapaz de dar margem a um Estado de direito, ele será sempre e dará sempre margem a um Estado de exceção (não é mera coincidência que os grupos terroristas palestinos têm uma enorme dificuldade de convivência com a autoridade palestina, com o embrião do Estado palestino, que de certa forma sabotam a sua criação, permanentemente). Como vai teorizar os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, um grupo estruturado como uma máquina de guerra, sempre terá dificuldade em se submeter à forma do Estado. O Estado tenta capturar as máquinas de guerra e elas reagem sabotando a formação do Estado. Embora os Estados não parem de fazer a guerra, como bem demostra a belicosidade expansionista, racista e fundamentalista religiosa do Estado de Israel, que não cessa de ocupar ilegalmente territórios palestinos e de realizar incursões militares assassinas nas cidades das regiões árabes, não podemos negar que a forma Estado, notadamente se é democrático e de direitos, constitui avanços civilizacionais significativos, o que não implica a sua perfeição e, muito menos, desconhecer que também perpetram crimes e favorecem injustiças e desigualdades de toda ordem.

Mas creio que, também, no plano político, apelar para atos de terror é contraproducente. O terrorismo instaura uma situação de confrontação indefinida à medida que opera com a lógica do tudo ou nada, do extermínio, inclusive físico, do oponente. Se a política é a arte da negociação, do diálogo, da mediação dos conflitos, através do uso desse instrumento precioso que só os humanos possuem que é a palavra, que é a linguagem; se a política é, justamente, a substituição da altercação e da disputa sanguinária pela disputa verbal e pelo estabelecimento de acordos possíveis, o terror faz a política soçobrar. Me causa espanto que setores que se dizem do espectro político da esquerda possam defender ações e eventos que são o testemunho vivo do fracasso da política, da negociação não sanguinária. A lógica da eliminação do oponente prefigura uma situação de desequilíbrio de forças, de aniquilamento das dissenções, do direito de se opor e de resistir aos poderes, sejam eles quais forem.

A lógica terrorista da eliminação do oponente, do inimigo, prefigura uma situação política de autoritarismo e opressão, de eliminação permanente daqueles que vierem a discordar.

Se, por acaso, o Hamas vencesse a guerra com Israel, que é o objetivo delirante de sua declaração de guerra ao Estado israelita, se ele conseguisse destruir o Estado judeu, o que viria a seguir? Para as populações judias não há a menor dúvida: passariam a sofrer as mesmas perseguições, violências e injustiças que hoje sofrem os palestinos nas mãos do Estado de Israel. Mas, eu não tenho duvida, que a violência e o autoritarismo político também se voltariam contra os “inimigos internos”, os grupos de palestinos que não concordam com os ditames políticos do Hamas. Uma máquina de guerra terrorista não sabe como parar, como depor as armas, a não ser que isso se dê através de um longo processo de negociação, encabeçado pelo Estado, como se deu com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARCS) ou pela perda progressiva de suas bases sociais de sustentação, com as mudanças econômicas, sociais e culturais trazidas pela nova realidade, como foi o caso do ETA (Euskadi Ta Askatasuna), na Espanha.

Como humanista que sou, se isso ainda significa alguma coisa em tempos de adoração das máquinas e das tecnologias, não creio que uma prática política que começa por fazer da carne do outro, do corpo do outro, um mero artefato, um mero objeto de agressão, possa fundar qualquer ordem social humanamente aceitável. Transformar um corpo humano numa bomba de destruição em massa é praticar um gesto de radical desumanização. Os corpos dos homens e mulheres bombas são, inicialmente, reduzidos a condição de carnes, sofrendo um processo de esvaziamento subjetivo. A lavagem cerebral, a fanatização religiosa, o condicionamento psíquico, o cultivo do ódio, da raiva, do ressentimento, de todas as paixões tristes, dão início ao processo que vai levar esse corpo a ser reduzido a condição de carnes moventes (já que o fato de serem carnes vivas e moventes é que as tornam uma arma perigosa, pois podem se deslocarem e circularem, escolhendo seus alvos), para então, ao serem acopladas a artefatos explosivos, se tornarem um mero objeto, uma coisa que explode, mata e fere, indiscriminadamente, quem estiver a seu alcance. O homem ou a mulher-bomba é uma arma letal e perigosa pois dotada de racionalidade humana, mas sobretudo de um rosto humano. Não nos aproximaríamos de uma bomba se ela não parecesse conosco, não fosse um nosso semelhante. A bomba humana circula entre os humanos e pode, assim, melhor os estraçalhar, fazer crianças, idosos, jovens voarem pelos ares transformados em postas de carnes calcinadas.

Como podemos defender e justificar a degola em frente a uma câmara de Tv de uma jovem ou de um senhor apenas porque trazem no passaporte a nacionalidade britânica, norte-americana, francesa ou alemã? Pessoas que são despersonalizadas para encarnarem a nação odiada que, no fundo, nada mais é do que o ódio a uma abstração política, às autoridades que a encarna, às ações de violência e injustiça praticadas pela minoria dirigente desses países imperialistas e colonialistas.

O terror termina por reforçar a imagem de barbárie que os colonialistas europeus não pararam de atribuir ao outro colonizado.

As ações do Hamas contra um país que procura assumir uma imagem de europeizado e, portanto, de civilizado, só faz reforçar a imagem de barbárie atribuída aos árabes, a quem professa a religião mulçumana. O terror islâmico, como todo terror, só faz reforçar estereótipos e preconceitos contra aqueles que o pratica, só os coloca mais distantes de ser tomados como agentes políticos em pé de igualdade em direitos e dignidade, em humanidade, o que é fundamental para que qualquer negociação política série seja levada a efeito. Se é chocante vermos como o Estado judeu, que representa e dirige um povo que foi vítima do Holocausto, um dos maiores crimes contra a humanidade, que foi objeto de um brutal processo de desumanização por parte de um Estado terrorista, de exceção, como foi o Estado nazista, parece nada ter aprendido dessa experiência, é também chocante vermos pessoas que se dizem de esquerda considerarem que a lógica do terror, que ações terroristas, que atingem indiscriminadamente uma população, que não selecionam alvos específicos (embora às vezes o faça), possa vir a construir algo que não seja tão execrável quanto é, hoje, o funcionamento do Estado de Israel. Como afirmou o presidente Lula, qualquer forma de terrorismo deve ser condenada, repelida. O terrorismo não é uma forma de fazer política, ele é o naufrágio da política e de seu exercício orientado por uma visão ética do outro, do humano, do semelhante. Não se pode olhar no olho do outro que se vai matar, não se pode ver na face do outro um semelhante e o eliminar. Somente com um olhar distorcido pelo ódio, com uma mirada transtornada pela raiva e pelo ressentimento se pode eliminar um outro que nada de objetivamente te fez, que nenhum mal concreto te causou.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.