A importância social do amor

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Tendemos a pensar o amor como um sentimento individual, pessoal, que envolve, no máximo, duas pessoas que, através dele, estabelecem laços, alianças, relações duradouras. Foi o romantismo, movimento cultural e filosófico do final do século XVIII e de grande parte do século XIX, que, ao mesmo tempo que valorizou o sentimento amoroso, o fez ser associado a uma expressão individual, singular, particular. A par com o avanço da ideia de indivíduo como o modo de ser de cada um, forma de se pensar e construir identidades característica do mundo burguês, capitalista moderno, o amor que, anteriormente, em sua formulação cristã, era um sentimento coletivo, um sentimento que deveria unir a todos os cristãos, todos reunidos e irmanados através do amor a Deus e a Cristo, passa a ser pensado como a expressão de uma alma singular, de um sujeito e de uma subjetividade únicas e autorreferentes.

À medida que o sentimento de si mesmo, que a ideia da existência de um si mesmo, de um Eu individual e fechado em si mesmo, se desenvolveu na cultura ocidental, o amor foi sendo, cada vez mais, pensado como um sentimento pessoal, excepcional, que só aconteceria em dados momentos especiais da vida e que se dirigiria a um outro indivíduo também especialíssimo.

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Os românticos atualizaram, de certa forma, a ideia platônica (ou seja, a formulação feita pelo filósofo grego Platão) das chamadas almas gêmeas, duas almas individuais que, no entanto, estariam destinadas a se encontrarem. Em seu livro O Banquete, escrito a dois mil e quatrocentos anos, Platão nos oferece uma explicação do porquê as pessoas se apaixonam. Como o livro tem o formato de um diálogo, em torno de uma mesa de banquete, Platão coloca na boca do famoso dramaturgo Aristófanes a sua teoria sobre o amor. Esse sentimento era motivo de desconfiança e suspeita entre as elites gregas, uma sociedade que valorizava, sobremaneira, a racionalidade e o controle sobre os sentimentos e paixões. Uma sociedade dominada por uma aristocracia masculina que elogiava o que chamavam de temperança, ou seja, a capacidade de cada um de agir com moderação, de não se entregar a sentimentos e paixões exacerbadas.

Os gregos tendiam a condenar os excessos, o que chamavam de húbris, ou seja, tudo aquilo que passava da medida, que beirava ao descomedimento. Eles viam o amor como um sentimento capaz de levar a perda de controle sobre si mesmo, como um sentimento que empanava a racionalidade, aquilo que devia presidir a vida de todo homem adulto. O amor, como esse sentimento capaz de levar à dependência, à passividade e até mesmo a escravização diante de um outro (lembremos que a sociedade grega era uma sociedade escravista e que a condição de escravização era aquela menos valorizada, ela significava uma desonra para um homem livre) era temido e pouco valorizado pois podia, inclusive, tornar um homem obcecado, irresponsável e até levá-lo à loucura.

No entanto, em O Banquete, Platão propõe aos seus convivas que discutam as virtudes que poderia ter o sentimento amoroso. Um dos convidados afirma que o amor pode tornar as pessoas corajosas, intrépidas, sendo capazes de tudo para defenderem o ser amado. Ele lembra quão vantajoso era para os exércitos gregos possuir batalhões formados por amantes homossexuais, casais que atuavam em conjunto, um ao lado do outro, tornando-os mais valentes e mais dispostos a tudo fazer para defenderem a vida de seu companheiro de vida e de batalhas. Sócrates, professor de Platão, que estaria presente no banquete, coloca o amor na base do próprio pensamento filosófico, à medida que defende que a filosofia, como a própria etimologia da palavra indica, nasceria do amor pela sabedoria, do amor pelo saber e pelo conhecimento.

Mas é Aristófanes que apresenta o que seria o mito de origem do amor: no início dos tempos os seres humanos teriam um formato totalmente diferente, cada homem teria uma forma inteiriça, seu dorso era redondo, os flancos eram em círculo, ele possuía quatro mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo, mas a cabeça sobre os dois rostos, opostos um ao outro, era uma só, e quatro orelhas, além de dois sexos. Embora fosse ereto como agora e pudesse se deslocar na direção que quisesse, quando se punha a correr, tinha que ir girando sobre si mesmo, locomovendo-se em círculo, apoiado sobre os seus vários membros. Esses seres podiam ser compostos de duas metades masculinas, de duas metades femininas ou de uma metade masculina e uma metade feminina. Por ser muito poderosos esses serem se voltaram contra os deuses e os atacaram, eles então, a conselho de Zeus, resolveram humilhá-los, partindo-os em dois. Os humanos, divididos em dois, vagariam pela terra e pela vida procurando a sua metade perdida, macho procurando macho, fêmea procurando fêmea, macho procurando fêmea (vejam como na cultura grega não havia recusa quanto aos amores que hoje nomeamos de homossexuais).

Vemos que nas reflexões feitas acerca do amor em Platão, ao contrário do que vai ser dele apropriado pelos românticos, o amor não é só essa procura individual pela cara-metade perdida. O amor guarda virtudes que tem que ver com a vida coletiva e social, inclusive com a vida política e pública, com implicações, inclusive, na guerra, associação para nós inimaginável.

O poder de atração do amor, o fato de que o amor nos abre para o outro, nos faz necessitar de um outro, nos faz sair de nosso centramento egoico, faz dele um sentimento essencial para a própria existência da vida em sociedade.

O amor nos ensina, para o bem ou para o mal, que necessitamos dos outros para viver, que nossa vida está, sempre, de certa forma, na dependência, nas mãos de outros. Numa sociedade que forma pessoas cada vez mais individualistas e egoístas, que possuem a maior dificuldade de se abrirem para os demais, de se doarem a um outro, de admitirem que sem um outro se é incompleto, o amor resta como a esperança de que os próprios laços de solidariedade, de empatia, de sociabilidade não venham a ser rompidos. O amor causa muito sofrimento, é angustiante e leva ao desconcerto, exatamente porque vivemos em uma sociedade onde as pessoas estão cada vez menos dispostas a abrir mão da sua individualidade, da sua vida própria, da sua vida isolada e solitária. A solidão, e com ela a depressão, é um dos grandes males do nosso tempo, motivo de adoecimentos psíquicos e de muitos suicídios. Numa sociedade que canta toda hora as vantagens e as virtudes da liberdade individual, o amor aparece cada vez mais como uma prisão, como um compromisso que não se quer assumir.

Talvez precisemos reaver uma máxima cristã de que sem amor ao próximo não há vida coletiva e nem felicidade pessoal. Muitas das generosas utopias, que surgiram no lastro do Iluminismo, na Europa do século XIX, advieram da laicização do pensamento cristão em torno do sentido da vida humana. Liberalismo, socialismo, anarquismo, comunismo, a doutrina social da Igreja Católica, surgiram a partir da transformação do amor pela divindade em amor pela humanidade.

Embora muitos revolucionários e reformistas, dos séculos XIX e XX, tenham tido dificuldade em manter laços amorosos em sua vida pessoal, fizeram do amor a espécie, do amor ao povo, ao trabalhador, aos espoliados, aos dominados, aos desfavorecidos, o objetivo de suas vidas. Muitos não só empenharam suas forças, renunciaram à sua própria vida egoísta, individual, em nome de uma causa coletiva, como deram a própria vida, derramaram o seu sangue por ela.

Creio que os anos sessenta do século XX se constituem num marco final dessa disposição de muitos em colocar suas vidas a serviço de uma causa comum por amor a humanidade, aos homens e mulheres anônimos. A emergência da vaga neoliberal, do pensamento neoliberal no campo da política, da economia e da cultura, representou um recuo coletivo dessa disposição de colocar o amor ao outro, ao próximo, como objetivo e meta de vida. Mesmo no seio das religiões cristãs cada vez mais o que se busca é a prosperidade individual e uma espécie de salvação pessoal. A própria figura de Deus se privatiza, com ele se tornando fiel às pessoas, ao invés delas serem fiéis a seus ensinamentos, com ele concedendo benefícios privados como um carro ou um jet-ski. O que mais se lê em para-brisa de carros é que Deus é fiel e que a coisa foi dada por Deus ou Jesus, aquele que não teve nada de seu na terra, mas que vive distribuindo mercadorias e dinheiro para seus pastores e ovelhas.

O amor como força coletiva de atração e de irmanamento, de solidariedade e companheirismo, dá lugar, como não poderia deixar de ser, à força destrutiva do ódio. O ódio que separa, que individualiza, que mantém as distâncias, as diferenças e as desigualdades entre as pessoas. O ódio que evita o chamado a partilhar sua existência, a se responsabilizar pelo outro, por toda a humanidade. Nesse momento em que sem amor ao próprio planeta, à natureza, às plantas e animais, não conseguiremos sobreviver como espécie, me preocupa, sobremaneira, que cultivemos muito mais o ódio, do que o amor como força coletiva. Embora ainda haja quem se arrisque a buscar um amor para dizer ser seu, em nossa época, a maioria quer é ficar ou quer mesmo é morar no cabaré, para ter sexo sem compromisso, ter sexo como mercadoria, ter relações eróticas e de prazer sem que seja necessário assumir qualquer compromisso.

O número de matrimônios cai, o número de relações precárias e informais cresce, os pais querem cada vez menos ter filhos ou por eles se responsabilizarem, os velhos pais são cada vez mais abandonados e institucionalizados, as amizades se tornam cada vez menos presenciais e carnais, à medida que crescem o número de amigos virtuais, aqueles que nem fedem, nem cheiram, que não fazem nenhuma cobrança e exigência e se o fizerem basta com o click bloqueá-los.

As pessoas vendem seus corpos aos pedaços nas redes sociais e nos sites de relacionamento, milhares de pessoas fazem sexo on-line, gozam sozinhos nas salas do Onlyfans, salas para apenas fãs, para gente sozinha e solitária, gente mal-amada ter a ilusão de se relacionar com alguém. A taxa de natalidade despenca na maioria dos países gerando o envelhecimento da população e a perda da pujança econômica. Estamos a caminho de um mundo decrépito por falta de amor.

A ascensão política da extrema-direita significa a centralidade do ódio no exercício das atividades públicas, o exercício permanente do egoísmo, de políticas insolidárias e individualistas. São os ricos, os milionários do mundo, pensando só em si mesmos, acumulando fortunas sem sentido e sem finalidade social. O declínio das esquerdas, daquelas forças políticas que ainda cultivam a solidariedade e a preocupação social com os outros, com os mais necessitados e vulneráveis, significa que o amor é cada vez menos valorizado em sua dimensão de força coletiva, de força construtiva da própria sociedade, do viver juntos como espécie e como humanidade.

Quando vemos, todos os dias, no Parlamento brasileiro, trogloditas a vomitar ódio contra os mais vulneráveis, quando vemos a retórica do preconceito, do desapreço, do deboche, quando vemos as agressões se sucederem, gente movida pela raiva, pelo ressentimento, mas sobretudo pelo preconceito, pelo egoísmo, pelo cinismo, pela hipocrisia, fazerem do desamor a bússola de sua atuação parlamentar, deletéria e incivilizada, percebemos que sem o amor voltar a ser visto e valorizado como um sentimento coletivo, que deve mediar e mover as nossas ações em relação ao outro, estaremos condenados não só como civilização, mas como espécie.

A natureza, por amor a si mesma, porá fim a essa espécie movida pelo individualismo, pelo egoísmo e pelo ódio a si mesma e a tudo que a rodeia. Para uma espécie que a tudo despreza, até aos seus, jogados aos montes nas sarjetas da vida, a natureza não terá outra coisa a fazer senão também dar a ela o merecido desprezo.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.



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