Do corte de cabelo à mudança de nome, minha esposa acolheu quem realmente sou e me faz estar vivo

O homem que superou dúvidas, medos e violências porque se sentiu amado naquilo que tem de mais precioso: a identidade

Legenda: Devido a uma cerimônia do Candomblé, religião que Roberta e André professam, o casal optou por fazer as fotos para esta coluna com a vestimenta característica
Foto: Fabiane de Paula

Abril de 2019. É noite, e André caminha pela rua. Ele passa em frente a uma igreja evangélica, onde três pastores fecham as portas após o culto. Tão logo o trajeto avança, os homens começam a segui-lo. Falam palavras de baixo calão, dizem que ele vai para o inferno. Largam as Bíblias das mãos e começam a espancá-lo. São chutes na barriga, nos braços e nas pernas. A dor é lancinante, mas André sobrevive. Nunca foi de desistir.

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Esta, porém, não é uma história sobre o mal. É sobre como a gente se recompõe para gerar vida. E a vida do André se reergueu porque ele tem a Roberta. Ou melhor, eles têm um ao outro. São alma igual desde 2015. À época, se identificavam enquanto mulheres cis, com as próprias bagagens e experiências. Tinham filhos de outros relacionamentos, por exemplo, e carregavam sonhos que não diziam nem a si mesmos.

“A gente se conheceu por meio de uma igreja inclusiva. Naquele tempo, Roberta era cristã e eu não era de nenhuma religião. Lembro que passamos por muitos processos porque, sendo LGBTs, tínhamos muito receio de andar de mãos dadas e tudo. Ainda não existia uma lei que nos respaldasse. Mas queríamos construir algo”. E querer é sempre forte, né? Foi o desejo que movimentou os próximos passos.

Foto: Helene Santos

Passaram por todas as fases esperadas de um amor romântico – namoro, compromisso, noivado e casamento. Já se viam distintos, pertencentes. O mundo lá fora, no entanto, continuava estranho. A aceitação de um casal assim geralmente é dura, turva. Machuca e corrói. A saída é mirar no que faz bem – a companhia, o carinho, o apoio, coisas que tinham de sobra e que permaneceram mesmo com uma descoberta.

É que, no período do noivado, André, antes mulher lésbica, começou a se identificar como homem trans. Olhava para o espelho e não se via mais como antes. Queria mudar, ser quem é de verdade. Foi o Candomblé que ensinou: Oxum é rio. Se muito cheio, transborda. Não é assim com a gente também? Se a gente for a gente demais, não dá pra guardar, não. 

Foto: Arquivo pessoal

André compreendia isso enquanto lidava com os próprios demônios: a relação tão boa com Roberta continuaria depois da revelação? Ela ainda o aceitaria quando a verdadeira identidade dele aflorasse? Sim, porque eles se conheceram de uma maneira, e agora tudo seria distinto. E então? Esse tira-teima não durou muito. Roberta mudou nada: ficou.

Estava ao lado do marido quando André decidiu cortar o cabelo para deixá-lo à altura da aparência interna. Acompanhou-o na mudança de nome, naquele novo princípio para si e os outros. Cuidou dos machucados e foi à delegacia quando, ensanguentado e confuso, André chegou em casa espancado pelos pastores evangélicos naquela noite. Era o início da transição de gênero dele, aqueles homens não consideraram isso. Não consideraram nada. 

Foto: Arquivo pessoal

“Pra eles eu já era uma aberração, então não tive nem reação de falar. Só deixei eles me espancarem. Quanto mais reação eu tivesse, mais iria apanhar. Pessoas passaram e não se manifestaram. Ao chegar na delegacia, os policiais disseram que era ‘briga de viado’. Ou seja, automaticamente disseram que os pastores estavam certos. Isso me frustrou muito. E a Roberta comigo, ao meu lado, me dando todo o suporte. Ela é o meu pilar”.

André sente isso quando acorda ao lado dela. Olha para Roberta em silêncio – o sol entrando pelo quarto, amarelando tudo – e lança uma prece aos céus: para que essa calmaria não passe. Que nunca mais volte o pânico de sair de casa com medo da violência. Que nunca mais venha a dúvida de que não seria acolhido, apesar das mudanças em si. Que as relações se estreitem, que o que for bom prevaleça, que o tempo seja generoso.

Legenda: André, Roberta e a família que construíram juntos
Foto: Arquivo pessoal

Certas coisas já dão resultado. A família nuclear de André agora é encarada por ele com mais carinho. Na época da revelação da sexualidade, expulsaram-o de casa. “Às vezes nossos pais têm uma criança ferida. Eles cresceram numa construção diferente, então, o que pra gente já é possível, antes era impossível. Eles só reproduzem o que receberam”. Com isso, a própria família dele e de Roberta evoluiu em afeição.

Moram todos juntos – com o casal, dividem o teto Marcos Ianderson (filho biológico de André), Sara Gabriela e Yasmin Gabriele (filhas biológicas de Roberta). Devido à guarda compartilhada, de 15 em 15 dias as crianças preenchem a casa. Vão pouco a pouco realizando anseios, avolumando a beleza. Quando uma pessoa vive de verdade, todos os outros também vivem, escreveu uma autora americana. É a pura certeza.

Foto: Fabiane de Paula

Ali no Antônio Bezerra, no apartamento onde tudo acontece, acontece mesmo é o sonho. “O amor é uma fonte. E nada paga ser quem se é de verdade. Por isso, mesmo que os desafios continuem, a união com a Roberta me fortalece. Agradeço todos os dias por não ter desistido de mim. Quando acordamos um ao lado do outro, digo a mim mesmo: fiz a melhor escolha”.

Assim André vira Oxum. Rio transbordante. Cadê a paz que estava aqui? Espalhou-se. Nunca foi de desistir.


Esta é a história de amor de André Guian, Ivana Roberta Rodrigues e a família que construíram juntos. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.

 

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor