Lembro-me, como se fosse hoje, da alegria do meu avô ao ver as primeiras precipitações da estação chuvosa. Se a água caísse em janeiro, ele já corria para preparar sua pequeníssima propriedade para o plantio de feijão, das sementes de milho e de mandioca. O velho Chico do Lino, como muitos sertanejos do semiárido, nunca pensou nas chuvas enquanto problema. Antes de tudo, eram, segundo suas crenças, uma grande benção dos céus.
Se para os habitantes do mundo rural o pensamento vai na direção da fé do meu saudoso vovô, para os citadinos a intensidade das chuvas pode ser uma grande preocupação.
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Vamos à cronologia das manchetes. Em abril de 2010, em Niterói, após fortes eventos pluviométricos, o Morro do Bumba veio a baixo e com eles dezenas de habitações precárias caíram, ceifaram vidas e a esperança de algo próximo a 300 famílias. Tempo depois, muitas famílias, mesmo cientes das condições de risco, não tiveram outra alternativa e voltaram às zonas de perigo.
Em janeiro de 2011 as chuvas que abateram a região serrana do estado do Rio de Janeiro provocaram desmoronamentos, avalanche de lama e quase mil pessoas perderam a vida nas cidades de Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis.
No Vale do Itajaí, lá no estado de Santa Catarina, o ano de 2020 foi trágico. As inundações afetaram mais de nove cidades, mortes foram registradas e muitas casas e infraestruturas destruídas. No mesmo ano, por aqui no Ceará, era fevereiro e a cidade do Crato viu o canal do rio Granjeiro transbordar depois de uma chuva de mais de 100 milímetros.
Neste mesmo ano, outros tantos alagamentos e problemas foram registrados em São Paulo e demais municípios da sua região metropolitana. No apagar das luzes de 2021, acompanhamos o caso dos municípios do sul da Bahia e agora, em 2022, vemos a condição em Minas Gerais. Para estes casos, não é preciso nem gastar as teclas face a proximidade e a magnitude da calamidade socioambiental da qual todos estão lembrados.
Diferente do que possamos concluir, o problema não está nas chuvas. Os problemas (e são muitos) estão aqui em baixo, sobretudo nos ambientes urbanos. A chuva, como o melhor dos fiscais de obra, só deixa claro o que andamos fazendo de errado.
Nos ambientes urbanos, diante da intensa ocupação e precária artificialização do sítio natural, não há proteção adequada das matas ciliares dos rios, produz-se uma estrutura de escoamento pluvial subdimensionada e autoriza-se construções que tornam as estruturas insuficientes aos fluxos.
O pior de tudo, frente a desigualdade das condições de acesso à moradia, a estrutura econômica e social condena milhões de pessoas a construírem suas habitações muito próximas às áreas de inundação de rios ou em encostas altamente inadequadas à construção residencial.
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Um dia a chuva vem mais forte do que se espera. Isso é natural e vem se agravando em virtude das mudanças climáticas. Como resultado vemos prejuízos e mortes evitáveis acontecerem com frequência. Mais do que isso, sempre os mais pobres são também os mais vulneráveis, os que mais perdem, os que mais morrem.
Na atualidade existem muitos sistemas e radares capazes de prever e recomendar as medidas preventivas mais adequadas. Conheço dezenas de estudiosos e centenas de estudos que trazem informações e conclusões minuciosas em relação às áreas de risco e aos eventos extremos. Outros tantos mapeamentos já foram realizados e indicam exatamente onde o problema pode acontecer.
O que as matérias dos jornais têm registrado não são desastres naturais. O problema não é ausência de tecnologia. O problema não é a chuva em si; o problema é o desigual acesso às boas condições de vida nas cidades.
Continuamos, de fato, diante de uma crise de parcialidade no planejamento e na gestão da cidade brasileira. As áreas mais pobres e frágeis da cidade, muito mais que recursos para ações paliativas, merecem prioridade nos orçamentos municipais também nos dias ensolarados.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.