Terra da luz, imagem e som: conheça a trajetória dos videoclipes em Fortaleza

Os clipes produzidos na capital cearense servem de termômetro para compreender as políticas públicas de acesso ao segmento do audiovisual

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.Oliveira@diariodonordeste.com.Br

Nos primeiros segundos do videoclipe de "Thriller", Michael Jackson (1958-2009) mandou um recado ao público. "Devido às minhas fortes convicções pessoais, gostaria de enfatizar que este filme não endossa a crença no ocultismo", enfatizou. Décadas depois do lançamento, identificar se a mensagem era parte do jogo cênico ou literalmente a estrela avisou que não andava metido com forças sobrenaturais, seguem hoje como questões relegadas ao terreno da especulação.

>O paraíso elétrico do disco 'In Bloom'

Uma certeza, no entanto, emerge. "Thriller", enquanto produto audiovisual hipnotizou multidões pelo Globo. Nada de magia, era tecnologia. Michael e o cineasta John Landis, autor do filme, estabeleceram outro patamar à indústria pop. O videoclipe ultrapassava o campo experimental e se firmava como uma necessidade para a divulgação dos artistas. A febre do "clipe" alastrou-se via satélite, conectando territórios e realidades sociais distintas. Na capital cearense dos anos 1980, o diretor Joe Pimentel trabalhava como fotógrafo de cinema quando testemunhou a efervescência do formato. "As gravadoras começaram a investir pesado nesse formato aí, de transformar o mercado da indústria fonográfica em algo visual", divide.

A primeira oportunidade do cearense de investir no nicho veio com alguém bastante próximo. Tratava-se da amiga e cantora Kátia Freitas, entusiasmada naquele momento com a chegada do primeiro disco. A dupla escolheu filmar duas músicas do álbum intitulado "K", as faixas "Um Qualquer" e "Coca-Colas e Iguarias". O primeiro trabalho foi na raça, basicamente uma câmera, o diretor, a cantora e um assistente. Como locação para as filmagens, um prédio em ruínas na Avenida Leste-Oeste. A estética preta e branca coloca Kátia em sintonia com a urbe. Paredes pixadas, imagens do trânsito caótico de Fortaleza e o vai e vem de anônimos.

Durante o verso "Eu quero saber onde vai dar a minha sorte. Eu quero saber onde vai dar", Joe estabelece um rápido corte e mostra a ex-atriz Gasparina Germano (1918-1998) entre os passantes da Praça do Ferreira. Ao enquadrar aquela mulher, considerada a "dama do teatro cearense" temos acesso a um registro único e questionador sobre os destinos da vida e o descaso com a arte no Ceará.

Mesmo feito no improviso, como lembra o diretor, o resultado foi dos mais favoráveis. "Conseguimos colocar ele na MTV que estava começando no Brasil naquela época. Foi um dos primeiros clipes vinculados no canal fora do eixo Rio-São Paulo". Quase dois anos depois foi a vez de "Coca-Colas e Iguarias" ganhar imagens. Dessa vez com uma produção mais caprichada a peça foi sucesso imediato. Certamente, um dos produtos audiovisuais produzidos no Estado com mais visualizações nas TVs locais.

Mundo

Se existiu um templo para os clipes, um espaço sagrado para a peregrinação destes vídeos, um nome certo vem à cabeça: MTV. Em "Videoclipe, O Elogio da Desarmonia" (2004), o professor e pesquisador Thiago Soares situa a relevância do canal para o meio musical. "A popularização do videoclipe deu-se, sobretudo, nos anos 1980 através da criação da Music Television, a MTV - uma emissora de televisão primeiramente a cabo e depois aberta dedicada a exibir ininterruptamente videoclipes".

Autor também de "A Estética do Videoclipe" (2014), o acadêmico reforça o quanto a própria nomenclatura que define o videoclipe já nos apresenta uma característica: a ideia de velocidade, de estruturas enxutas. "A princípio, o clipe foi chamado simplesmente de número musical. Depois, receberia o nome de promo, numa alusão direta à palavra 'promocional'. Só a partir dos anos 80, chegaria finalmente o termo videoclipe. Clipe, que significa recorte (de jornal, revista, por exemplo), pinça ou grampo, enfoca justamente o lado comercial deste audiovisual", define em seus estudos.

Para a turma da música independente, daqueles motivados pelo "faça você mesmo", ter um material transmitido pela MTV era motivo de vitória. Cerca de vinte anos atrás, gravar um álbum era algo para poucos afortunados. O vídeo, assim, ganhava força como ferramenta mais rápida de disseminação da música. Dois realizadores locais conhecem estes labirintos da indústria. Ambos tiveram trabalhos veiculados na MTV, já na era dos 2000. André Moura Lopes e Roger Capone chegaram a este universo pela devoção quase religiosa pela música. Consumir, atuar no meio artístico trouxe para os cearenses o que hoje é o ganha pão.

André Moura Lopes se diverte ao se reconhecer como um músico frustrado. Nada de peso ou raiva como a denominação possa sugerir. Atuando com audiovisual desde os 17 anos, quando descobriu o Instituto Dragão do Mar, o realizador argumenta que tinha o sonho de ter uma banda ou algo similar. Concretizou o desejo atuando em duas frentes, produzindo eventos e fazendo videoclipes. Antes de produzir o primeiro vídeo musical, André já tinha no currículo dois curtas-metragens. Naquele início dos 2000, a tecnologia digital começava uma revolução sem precedentes na área. Mesmo assim, relembra, conseguiu com dificuldades duas câmeras para produzir o vídeo de "Prostituta Adolescente", da finada banda Kohbaia.

Legenda: Cuidado com a narrativa é o ideal, aponta André Moura Lopes
Foto: rodrigo gadelha

Filmado no Motel 90 e nas proximidades do trilho ferroviário do bairro Álvaro Weyne, o clipe dava início a uma parceria estética com Jonnata Doll que resiste até os dias atuais. André assinou boa parte da videografia do cantor, atualmente radicado em São Paulo ao lado da banda Os Garotos Solventes. A parceria vai além da música e o próprio Jonnata tornou-se ator de outros curtas dirigidos por André, como "Morpheu" (2010) e "Não se pode ficar com dois amores" (2012).

O cineasta divaga sobre o atual momento dessa manifestação artística. Traça paralelos entre dois campos extremamente interligados. "Hoje o videoclipe influencia o cinema. O clipe ele tem uma coisa meio que um corpo etéreo, o não corpo. Ele é quase o não objeto. Ele nasce de imagens subjetivas, colagens. O paradigma dele é bem mais abstrato. Diferente dos filmes tradicionais construído em atos, o videoclipe tem uma maior abertura", defende.

Aprender fazendo

Partindo do exemplo de André, podemos concluir que Roger Capone chegou ao audiovisual por um caminho contrário. Baterista da Capones, a oportunidade de investir no audiovisual nasceu pela necessidade do grupo em divulgar o nome. O pontapé no meio aconteceu com poucos recursos e criatividade para driblar os problemas.

Para se ter uma ideia, o clipe de "Não bebo porque é rosa" (2003) só foi possível por conta de uma câmera fotográfica que também filmava. Até aí tudo bem, o detalhe é que a máquina capturava apenas 30s em vídeo. Ou seja, era registrar esse curto tempo, parar, descarregar a imagem no computador, esvaziar o cartão e retomar a filmagem.

Legenda: Segundo Roger Capone, experimentar com a linguagem cinematográfica só ajuda
Foto: rodrigo gadelha

Em 2019, aquilo que começou de forma artesanal, mambembe, tornou-se uma questão profissional. Nesse intervalo, o diretor testemunhou a derrocada das grandes gravadoras, a cristalização do MP3 e até mesmo a implosão da MTV. Transformações drásticas, responsáveis por alterar os processos de consumo e disseminação da música.

"Antes eu falava que o clipe ia ser tão importante como o disco, mas isso já passou. Hoje, o vídeo é muito mais importante que o disco. Não falo da música, claro. Tem banda que grava um single, mas tem que lançar clipe. Daqui a pouco tempo e já está acontecendo, não é só mais um videoclipe que te basta. Tu vai ter videoclipe, um 'lyric video', vídeo ao vivo e uma live em estúdio. Quatro vídeos para uma música", detalha.

Diante deste cenário, no qual o aparato digital segue em constante evolução, Roger é defensor do videoclipe enquanto ferramenta de experimentação e criação de narrativas. Ou seja, interessa explorar conceitos e formas de narrar. Filmar uma banda por si só é algo incomum entre os artistas que escolhe trabalhar. Um exemplo recente trata do clipe de "Céu Azul", da banda cearense Sulamericana.

Seleção de videoclipes cearenses

Em tom nostálgico, o trabalho recria o clima oitentista dos programas de auditório de Fortaleza. Viajamos a 1985 e o televisivo "Ceará Calouros" apresenta o quente dos astros da música. O vídeo conta com participação especial do apresentador Will Nogueira e estabelece um diálogo esperto sobre as raízes do entretenimento local. Entre idas e vindas, mudanças nos aspectos de linguagem e nos espaços de transmissão, o clipe continua como um recurso ambicionado por artistas da música. De Fortaleza, o mais recente caso é o vídeo de divulgação da música "TeardropDEAL", da cantora Clapt Bloom. Guiado por Lua Underwood, também produtor do álbum, o registro do debut solo de Clapt foi construído com muito esforço e poucas condições de trabalho.

Traçar um recorte da produção audiovisual cearense, voltada para a arte do videoclipe, possibilita um processo de leitura das políticas públicas voltadas à cultura no estado. De certo, um recorte da produção dos últimos 35 anos denuncia um conjunto de vídeos criados com poucos recursos, fruto de iniciativas particulares e isoladas.

No espaço temporal entre a parceria de Joe Pimentel e Kátia Freitas e o mais recente vídeo lançado por Clapt Bloom, a oferta de universidades, escolas e cursos de audiovisual na cidade ganhou impulso. O clipe continua como uma construção experimental, que esgarça de maneira radical as possibilidades do fazer cinematográfico. Alguns ciclos são perceptíveis, caso dos trabalhos de Joe Pimentel (Kátia Freitas), André Moura Lopes (Jonnata Doll), Petrus Cariry (69% Love), Gandhi Guimarães (Bonja Filmes e Arquivo Underground) e o próprio Roger Capone.

Outro aspecto explícito desse rápido levantamento é a predominância de realizadores homens no comando das produções. Fazer clipes continua dispendioso e pouco acessível para uma grande parcela de músicos da cidade. Todavia, a inventividade e sagacidade de criar e produzir mesmo com tantos perrengues se mantém firme no imaginário dessa turma. A mensagem de Michael Jackson não tratava de fantasmas ou monstros, profetizava a magia do videoclipe.

Filmografia selecionada

André Moura Lopes

Clipes

Kohbaia - "Prostituta Adolescente" (2004)
Lavage - "No longer" (2008)
Lavage - "No Final" (2007)
Jonnata Doll e os Garorotos Solventes - "Swing de Fogo" (2014)
Allysson Dos Anjos - "Daylight" (2016)
Jonnata Doll e os Garotos Solventes - "Esqueleto" (2017)
OUSE - "A Cura" (2018)
Jogo Doido - "Madrugada na Esquina" (2019)

Curtas-metragens

"Será Que Vai Chover?" (2002)
"Ilusão" (2004)
"Morpheu" (2010)
"Não se pode ficar com dois amores" (2012)
"Uma Fábula Para Eldorado" (2015)

Roger Capone

Clipes

Capones - "Quem Fez Esses Bolinhos?" (2001)
Capones - "Não Bebo Porque é Rosa" (2003)
Oitavada - "Agora Só Trato do que Ficou" (2007)
Not4Sale - "Olhos em Fúria" (2008)
A Trigger To Forget - "Never To Return" (2008)
Facada - "O Joio" (2011)
Rocca - "O Espelho" (2012)
Artur Menezes - "Damn! You know i'm a man" (2013)
Minerva - "Encontrar" (2014)
Selvagens à Procura de Lei - "Solidão" (2018)
Sulamericana - "Céu Azul" (2018)

Curtas-metragens

"Juros Exorbitantes" (2008)
"A Outra Cova" (2015)

Cursos de audiovisual em Fortaleza

Cinema e Audiovisual da Universidade de Fortaleza (Unifor)
Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Casa Amarela Eusélio Oliveira
Escola Pública de Audiovisual da Vila das Artes (EAV)
Porto Iracema das Artes
Abel Produções Audiovisuais
Travessa da Imagem

 

 

 

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