Entendo o fogo, porque sou daqui

Neste dia 13 de outubro, o cantor Fágner comemora 69 anos em grande estilo

Escrito por Jorge Hélio Chaves, especial para o Verso ,

Quase 70! Raimundo Fagner completa 69 anos neste sábado. Resolvemos comemorar mais esta primavera deste descendente de libanês com cearense, nascido em Fortaleza e registrado em Orós em 13 de outubro de 1949.

O artista Fagner é inegavelmente digno de comemoração e tributo. Seu nome já frequenta uma direção de táxi em Belo Horizonte, veste a atual camisa 22 da “amarelinha” e tem sido homenageado por todo o Brasil. Inclusive por seus algozes. Caetano Veloso, por exemplo, que já dividiu com ele o disco de bolso do Pasquim, de 1972 (Fagner gravou a primeira versão de Mucuripe e o baiano, A volta da Asa Branca), e se tornou seu desafeto, gravou, com o filho Moreno, O Leão (parceria única de Fagner e Vinícius de Moraes), no CD-remake Vinícius de Moraes - A Arca de Noé (Sony Music, 2013). 

Pouco depois dos 20 anos de boy, largou as plagas alencarinas e se mandou para o Planalto Central, onde começou a cursar arquitetura e a inscrever-se em festivais do circuito universitário. Chegou a receber loas e premiações com duas de suas parcerias com o arquiteto Ricardo Bezerra: Manera fru fru, manera e Cavalo-ferro. Chegou a ser desclassificado no Festival Internacional da Canção de 1972 com 4 graus, dele e Dedé Evangelista.

Com 30, ganhou o Festival da Tupy de 1979, com Quem me levará sou, de Dominginhos e Manduka (“Amigos a gente encontra / o mundo não é só aqui / Repare naquela estrada / A que distância nos levará?”)

São milhões de fãs que lotam seus shows e (ainda) compram seus discos. Nem o intérprete de Paroara (tripla parceria com Fausto Nilo e Chico Buarque), Borbulhas de amor (a famosa versão feita por Ferreira Gullar para a música do dominicano Juan Luiz Guerra) e Deslizes (dos hit makers da década de 80 Sullivan e Massadas) consegue contabilizar.

Mesmo porque transitou por diversas gravadoras, desde quando gravou em dupla com o conterrâneo Cirino seu primeiro disquinho (um vinilzinho, na época chamado de compacto simples, com uma música de um lado e outra no lado dois), pela RGE. E, convenhamos, as contas das vendagens nessa área sempre estiveram em verdadeiras caixas-pretas.

Passou pela Philips (hoje, Universal Music), pela Continental, pela CBS (atual Sony Music), pela RCA (depois, BMG Brasil), pela Som Livre, pela Indie Records, até voltar para a Sony Music, onde registrou seu mais recente álbum, Pássaros urbanos (2014).

Chegou a capitanear o selo Epic, da toda poderosa CBS, na transição dos anos 70 para os 80, pelo qual lançou muitos colegas nordestinos, como Zé Ramalho, Amelinha, Cirino (um disco muito especial, de nome Estrela ferrada) e o extraordinário violonista Nonato Luiz. Aliás, no disco Terra, de Nonato, Fagner interpreta uma pérola (Quatro prantos, de Nonato Luiz e Fasuto Nilo) que passaria despercebida do grande público. Linda! 

O primeiro LP de Fagner foi Manera fru fru, manera (Philips, 1973), possivelmente o mais controvertido na história da MPB, por conta de vários conflitos relacionados a direitos autorais, envolvendo Canteiros, Sina e Penas do tiê (na verdade, Você, de Heckel Tavares, e não recolhida por Fagner do folclore, como constava dos créditos da edição original do disco), tendo recebido mais luzes a disputa com as herdeiras da poeta Cecília Meireles pela utilização não autorizada de versos do poema Marcha em Canteiros. Problema resolvido, a balada constou do disco duplo gravado ao vivo no Centro Dragão de Arte e Cultura, em Fortaleza, em 2000. A coautoria foi reconhecida e incluído Belchior, pois sua antológica Na hora do almoço era usada incidentalmente ao final de Canteiros. 

Foram, ao todo, 33 álbuns solos, 29 deles gravados em estúdio e dois ao vivo e, ainda, dois em espanhol. Raimundo também gravou um disco ao vivo no Japão, com o amigo Zico e Roberto Menescal. E uma incontável quantidade de coletâneas de suas músicas - mais de duas dezenas, com certeza.

Aliás, em dueto com Zico - que, como cantor é grande jogador -, gravou em 1982 um compacto simples com duas músicas carnavalescas, Batuquê de praia - que teve grande execução - e Cantos do Rio (ambas de autoria do falecido compositor cearense Petrúcio Maia).

Foi o organizador, pelo “seu” selo Epic/CBS, em 1977, do projeto SORO - Orós ao contrário - que reuniu pintores, desenhistas, chargistas, cantores e compositores e resultou na gravação de um disco com um encarte riquíssimo - com poemas, desenhos e letras de canções. Nunca virou CD aquele LP nem há qualquer registro visual dele.   

Uma coisa não se discute: Fagner é um dos mais ecléticos cantores/compositores da moderna música popular brasileira. Gravou, ainda, dois discos com o rei do baião Luiz Gonzaga, um disco memorável com o esplêndido Zeca Baleiro (que também gerou um DVD), outro ao vivo como compadre e parceiro Zé Ramalho (em que rememoraram, no melhor estilo “som do barzinho”, alguns de seus maiores êxitos comerciais).

Participou de dois outros grandiosos projetos discográficos, em seus tempos de CBS: Homenagem a Picasso (junto com a cantora Mercedes Sosa, o poeta Rafael Alberti e o violonista Paco de Lucía), de 1982, e Poets in New York (em que cantou com Chico Buarque “A Aurora”) , de 1986. 

A parceria e as tretas com Belchior

Apesar de serem os pais da emblemática Mucuripe, tão gravada e regravada - por Elis Regina, Roberto Carlos e Oswaldo Montenegro, por exemplo -, Fagner e Belchior não compuseram muitas coisas juntos. Apenas fizeram uma desconhecida Bolero em português, gravada em 1979 pela meteórica Cláudia Versiani; Moto 1, que o próprio cantor de Revelação e Noturno gravou em seu primeiro disco e também recebeu uma sensível interpretação da bossanovista Leny Andrade; e Noves fora, que, além de Wilson Simonal, Elis gravou em seu disco de saída da Philips (Elis especial, 1979) - era a música de abertura do disco, um delicioso samba com o jeito peculiar da zona sul carioca.
Ah, Fagner e Belchior também fizeram, junto com Fausto Nilo, Romanza, gravada no disco Orós.

Moraram por um tempo na casa de Jorge Mello, piauiense que adotara o Ceará e tinha seguido pro Sul maravilha no final dos 60, junto com Bel. A admiração mútua muitas vezes cedia diante das constantes e quase infantis brigas entre os dois. “Eram um árabe e um judeu em confronto permanente”, concluiu Mello, que foi parceiro e sócio de Belchior no selo Paraíso Discos.

Fágner chegou a fazer um antológico dueto com Belchior no disco deste Objeto direto (WEA, 1980), quando dividiram os vocais de Aguapé. Nesse álbum, aliás, Belchior faz a sua muito particular versão de Mucuripe, acompanhada unicamente por um delicadíssimo piano, com uma roupagem bem diferente das outras formas pelas quais a canção havia sido cantada.

Farpas marcaram o afastamento dos dois cearenses, mas Fagner nunca deixou de gravar músicas do rapaz latino-americano. Registrou, além de suas parcerias Mucuripe - regravada várias vezes -, Moto 1 e Noves fora (em belo dueto com Emílio Santiago) - Incêndio (de Belchior e Petrúcio Maia) e Paralelas - esta no disco Pássaros urbanos, numa interpretação que deixou muito a desejar. Tinha gravado, lá atrás, no disco Ave noturna (Continental, 1975), A palo seco - a única canção de Belchior registrada pelos três músicos cearenses mais famosos - além dos dois, Ednardo.

Incêndio foi há pouco regravada por Amelinha em disco dedicado ao cancioneiro de Belchior, mas a garra com que o torcedor do Leão e do Fluzão a gravou é insuperável, definitiva. Talvez, porque, em certa medida, seja conotativa descrição da polêmica e franca figura de Raimundo Fagner Cândido Lopes, que nega a existência do decantado “Pessoal do Ceará” e faz música em homenagem a Sérgio Moro - ainda inédita e, parece, inacabada.

“Estou aqui / parado, olhando o incêndio / do alto do prédio / os rolos de fumaça
Vejo da janela dos meus olhos / na cidade magoada ‘a usina de sonhos tão parada
Entendo o fogo, porque sou daqui / e essas paredes, porque sou daqui
Eu sei quem acendeu essa fogueira / que nos queima e não aclara / nossa noite maior, mais verdadeira  
Os bombeiros todos ganham os trinta dinheiros / pra esquecer o fogo / Mas eu veja a chama e tremo, porque sou daqui.”

Enquanto não vem o disco novo - já prometido -, é possível curti-lo cantando “Casa comigo?”, de Accioly Neto, autor de Espumas ao vento e Lembrança de um beijo, dois sucessos na voz de Fagner. A gravação faz parte de um disco-tributo ao compositor pernambucano que deverá sair em janeiro próximo. É só ir no You Tube e ouvir versos como: “Sou lindo por dentro / tô rico de sonhos / tenho a alma jovem / e a rua para andar / paixão e ternura / pra te namorar / e o bom Deus do céu / pra perdoar os meus pecados / dinheiro no bolso / saudade perfeita / a cabeça aberta e tudo no lugar / só falta uma coisa para me completar / e eu tô olhando pra ela / se você não casa comigo / tudo isso vale nada / a felicidade é conversa fiada / traz a caneta e diz onde eu assino, amor.”

É a cara do Fagner. Parabéns! Saúde perfeita! 

 

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